quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

afinidades

- tem a história da mulher manca.
- manca? lá vem você...
- não, é verdade, aconteceu! diz que a manca, coitada, ficava sozinha, largada num canto, ninguém queria saber dela - imagina, nas festas, se alguém ia correr o risco de tirar ela pra dançar? nada. sofria, a moça. sei que afinal conseguiu um namoradinho, um cara legal, trabalhador, parece que ele gostava mesmo dela. manca e tudo. pois o camarada arrumou casa, móveis, botou anel na mão dela, casou de véu, igreja e tal. pouco tempo depois é que rolou o escândalo, ele jogando as coisas dela pela janela. diz que ela o traía com um coxo, veja você, que ainda por cima era gago.
- mas o que é que você quer dizer com tudo isso?
- o quê. ora, que a pessoa não consegue aceitar algo que, na cabeça dela, é melhor do que ela. que os iguais se procuram, sei lá.


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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

toda nudez será celebrada

“Mulher nua
Sim
Nua
Você é uma mulher nua!”
foi o que ele me disse um dia.
desconcertada
envergonhada
busquei palavras com que cobrir
minhas indecentes entranhas
inventei silêncios e pudores
a me disfarçar as dores
sobre o pus da real loucura
calei verdades, omiti rancores
sobrepus camadas de falsa doçura.
na calada refugiei-me
parei de escrever
afastei-me do que sei e do que sou.

hoje eu me descubro
do que ele disse um dia
despida do que não é meu
afasto-me da doença e do sofrimento
refaço corpo e pensamento
reencontro minha nudez.
descoberta
dou graças, celebro
construo minhas essências.
Eva no paraíso
viva e radioativa de alegria
mulher nua, sim
hoje eu só me visto de poesia.

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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

aprendiz


Hermenegildo fazia umas redações simplesmente horrorosas. Nada fazia sentido, as frases, mal construídas, erros dramáticos de ortografia, pontuação, inexistente. Um suplício. Ainda por cima, insistia em escrever poemas que obrigava a professora a ler no final das aulas. Invariavelmente muito constrangida, ela perdia preciosos quinze minutos de seu almoço para ler as criações do persistente trovador e tecer alguns poucos comentários. Não queria desestimulá-lo - afinal, sua função era justamente despertar o amor pelas palavras, desenvolver a criatividade e a expressão de cada aluno. Mas não podia deixar de ser sincera e mostrar-lhe os problemas de suas tentativas, sempre tão limitadas.
Um dia a mestra se permitiu inventar uma saída honrosa para aquela tortura semanal: assim que ele se aproximou com suas folhinhas, ela se desculpou avisando que tinha um compromisso urgente. E foi com a maior alegria que saiu correndo. Na sua falsa pressa, a expressão de triunfo revelava uma vitória só comparável às raras ocasiões em que conseguimos ludibriar um flanelinha.
Mas eis que na volta do almoço para enfrentar as turmas da tarde, ela vê sobre sua mesa uma folha com palavras ordenadas como uma lista:
Flor
Manhã
Adeus
Noite
Sempre
Horizonte
Tristeza

Leu e releu, depois sorriu. Embora não fosse lá muito fã do estilo Djavan, era preciso reconhecer: não deixava de ser um avanço.
No dia seguinte fez questão de chamar o autor e dar-lhe os parabéns:
- Puxa, dessa vez você se superou!
Como o rapaz parecia não entender, ela desenvolveu:
- Você percebeu, Hermenegildo? Você viu como é possível? Neste poema você foi capaz de usar a síntese, você usou imagens que revelam um pouco do estado de alma... fico feliz, estou gostando de ver o seu crescimento. Continue assim!
Ao que, muito constrangido, ele respondeu:
- Ô, fessora... esse é o índice.

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