quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

afinidades

- tem a história da mulher manca.
- manca? lá vem você...
- não, é verdade, aconteceu! diz que a manca, coitada, ficava sozinha, largada num canto, ninguém queria saber dela - imagina, nas festas, se alguém ia correr o risco de tirar ela pra dançar? nada. sofria, a moça. sei que afinal conseguiu um namoradinho, um cara legal, trabalhador, parece que ele gostava mesmo dela. manca e tudo. pois o camarada arrumou casa, móveis, botou anel na mão dela, casou de véu, igreja e tal. pouco tempo depois é que rolou o escândalo, ele jogando as coisas dela pela janela. diz que ela o traía com um coxo, veja você, que ainda por cima era gago.
- mas o que é que você quer dizer com tudo isso?
- o quê. ora, que a pessoa não consegue aceitar algo que, na cabeça dela, é melhor do que ela. que os iguais se procuram, sei lá.


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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

toda nudez será celebrada

“Mulher nua
Sim
Nua
Você é uma mulher nua!”
foi o que ele me disse um dia.
desconcertada
envergonhada
busquei palavras com que cobrir
minhas indecentes entranhas
inventei silêncios e pudores
a me disfarçar as dores
sobre o pus da real loucura
calei verdades, omiti rancores
sobrepus camadas de falsa doçura.
na calada refugiei-me
parei de escrever
afastei-me do que sei e do que sou.

hoje eu me descubro
do que ele disse um dia
despida do que não é meu
afasto-me da doença e do sofrimento
refaço corpo e pensamento
reencontro minha nudez.
descoberta
dou graças, celebro
construo minhas essências.
Eva no paraíso
viva e radioativa de alegria
mulher nua, sim
hoje eu só me visto de poesia.

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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

aprendiz


Hermenegildo fazia umas redações simplesmente horrorosas. Nada fazia sentido, as frases, mal construídas, erros dramáticos de ortografia, pontuação, inexistente. Um suplício. Ainda por cima, insistia em escrever poemas que obrigava a professora a ler no final das aulas. Invariavelmente muito constrangida, ela perdia preciosos quinze minutos de seu almoço para ler as criações do persistente trovador e tecer alguns poucos comentários. Não queria desestimulá-lo - afinal, sua função era justamente despertar o amor pelas palavras, desenvolver a criatividade e a expressão de cada aluno. Mas não podia deixar de ser sincera e mostrar-lhe os problemas de suas tentativas, sempre tão limitadas.
Um dia a mestra se permitiu inventar uma saída honrosa para aquela tortura semanal: assim que ele se aproximou com suas folhinhas, ela se desculpou avisando que tinha um compromisso urgente. E foi com a maior alegria que saiu correndo. Na sua falsa pressa, a expressão de triunfo revelava uma vitória só comparável às raras ocasiões em que conseguimos ludibriar um flanelinha.
Mas eis que na volta do almoço para enfrentar as turmas da tarde, ela vê sobre sua mesa uma folha com palavras ordenadas como uma lista:
Flor
Manhã
Adeus
Noite
Sempre
Horizonte
Tristeza

Leu e releu, depois sorriu. Embora não fosse lá muito fã do estilo Djavan, era preciso reconhecer: não deixava de ser um avanço.
No dia seguinte fez questão de chamar o autor e dar-lhe os parabéns:
- Puxa, dessa vez você se superou!
Como o rapaz parecia não entender, ela desenvolveu:
- Você percebeu, Hermenegildo? Você viu como é possível? Neste poema você foi capaz de usar a síntese, você usou imagens que revelam um pouco do estado de alma... fico feliz, estou gostando de ver o seu crescimento. Continue assim!
Ao que, muito constrangido, ele respondeu:
- Ô, fessora... esse é o índice.

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terça-feira, 17 de novembro de 2009

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

aprisionada

Encontro no ônibus uma amiga que, muito constrangida, me pede um favor inusitado. Aconteceu que na noite anterior tinha saído com um rapaz.
-Sim, e aí ?
Aí simplesmente deu tudo errado. O programa foi chato, o cara estava deprimido, toda aquela expectativa romântica foi por água abaixo e agora ela estava presa no vestido.
- Presa no vestido ? Como assim ?
Bem, é que dormira na casa de uma amiga, tinha chegado de madrugada, provavelmente bêbada, de manhã cedo a amiga dormia, ela teve que continuar com a mesma roupa e... agora finalmente voltava pra casa. Só que morava sozinha.
- E você está presa no vestido ?
É que ele tem um monte de botõezinhos nas costas, até em cima. Ela se vira um pouco pra mostrar.
- É, ser humano sozinho não alcança, mesmo.
Entendi, claro. É quando a gente inventa uma ooooutra realidade. A ideia era uma cena muito sensual em que o cara vai despindo a mulher lentamente, desabotoando um por um, aumentando a tensão do desejo. Aquela ardente noite dos sonhos, inesquecível.
Na realidade nua, já liberta da sua prisão, minha amiga caminha cansada com o vestido semi-aberto.
Mas em seguida se vira, falando alto que é pra todo mundo ouvir:
- Próxima vez, vou sair beijando logo de cara que é pelo menos pra garantir algum e não sair no prejuízo !
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nova leitura

faremos uma nova leitura da minha peça "Vida é o quê?" agora em novembro no dia 17, 3a.feira, às 21h no Bistrô das Casas Casadas (Espaço Rio Carioca). Rua Leite Leal, 45


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terça-feira, 20 de outubro de 2009

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

sofá

Quando eles se mudaram pra casa nova, a mulher do Reginaldo inventou que queria um sofá de couro na sala.
-Mas couro de verdade, da vaca! Nada daquele plástico imitando, aquela coisa quente por baixo da perna.
-O que é que tem? Não é gostoso?
-Que, gostoso, o quê. Com esse calor que faz?
No início o Reginaldo desconversou. Fez que esqueceu. Mas virou, mexeu, ela voltava à carga. Ele argumentava, fazendo as contas da mudança:
-A gente não pode deixar pro ano que vem? Não dá pra por estofamento novo no sofá que a gente ganhou? Ainda tá inteirinho, é só trocar...
-Mas casa nova com sofá velho? Negativo. Depois, você também vai adorar, garanto.
É que ela tinha visto numa revista de decoração e depois, na casa da prima de uma amiga. Delícia de sofá, bem grande. Queria um enorme, pra poder deitar no fresquinho.
O marido falava do preço, do transporte, do espaço apertado. Mas ela não se dobrava. Ele enrolou o quanto pode, mas ela tanto insistiu que lá foi o Reginaldo pesquisar. Depois de visitar várias lojas, só confirmou o que já imaginava: o sofá saía mais caro que todos os armários embutidos. Nada feito.
-Ah, é? Então traz o sofá velho, pode trazer, que é nele que você vai dormir.
-Mas, como?
-Em mim você não toca. Então melhor dormir no sofá.
Não houve jeito. Quando chegou o sofá novo, enquanto a mulher pulava de alegria, Reginaldo parecia caminhar para o matadouro. Calculava as prestações.
Mas realmente, era lindo. Enoooorme. Podiam os dois deitar ali - e foi a primeira coisa que fizeram, depois de tanto tempo de abstinência. Valeu a pena, a satisfação da esposa o recompensou por muitas semanas.
Mudança feita, aos poucos é que foram sentindo o aperto na sala, o pouco espaço para os outros móveis, a dificuldade pra passar toda vez que queriam entrar ou sair. Com compras, então...
Mas o pior de tudo ficou mais visível quando convidaram amigos pela primeira vez: é que ela era baixinha, muito baixinha. Naquele sofá enoooorme, das duas, uma: ou ela encostava a coluna, ficando ridícula com as pernas esticadas e os pés sobre o couro, ou sentava na beirinha, pouco à vontade no esforço das costas eretas.
De alguma forma vingado, Reginaldo ria por dentro, observando pelo canto do olho a mulher sentada como uma boneca frente à TV. Ou como uma criança, que nunca deu o braço a torcer.
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quarta-feira, 23 de setembro de 2009

LEITURA de PEÇAS no Cosme Velho





O Casarão de Austregésilo de Athayde promove, às terças-feiras de setembro e outubro, a série Ciranda em Cena – rodas de leitura conduzidas por atores e autores teatrais.
O evento terá início às 20h30 e a entrada é franca.




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Cirandeiros em Cena
22/09 – Hamilton Vaz Pereira
29/09 – Sandra Bonadeus
06/10 – Lucília de Assis
20/10 – Veronica Diaz
27/10 – Roberto Athayde
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Casarão de Austregésilo de Athayde
Rua Cosme Velho, nº 599
Telefone: 2265 3536
casaraoaa.blogspot.com
producao@clarasandroni.com.br


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mal dosado

Coitado do Timóteo. Mas também, quem mandou casar ? Agora a mulher quer voltar a trabalhar. Ele sofre como louco, não quer deixar. O pessoal bem que avisou, não era pra casar. Ah, mas o Timóteo apaixonou. Também não era pra apaixonar...
Hoje ele põe a culpa no Amarante. Não, não foi ele que apresentou os dois, mas diz que o amigo é que lhe pôs essa ideia na cabeça. Que ele, crente, e ainda por cima, da polícia, jamais pensaria em estar com uma delas, quanto mais conversar.
Quando a primeira esposa fugiu com outro, o Timóteo caiu em depressão profunda e nunca mais quis saber de mulher alguma. Bebia sozinho, desvairadamente, até o dia em que o Amarante o reconheceu na saída de uma birosca. Engrenaram no papo, as lembranças do tempo de ginásio, o jogo de bola, as meninas e tal. Vendo o outro meio macambúzio, Amarante sugere uma visita ao bordel. Apesar da negativa inicial, a insistência do amigo, a solidão e o seu atraso nessa área acabaram vencendo os pudores da religião e da profissão.
Já na mesinha do salão, enquanto Amarante se divertia com a falsa loura, o amigo tristonho e mudo deixava a morena em ponto morto, constrangida, até.
Ao descerem do quarto às gargalhadas, Amarante e a loura dão com a cara séria do Timóteo, que só quer sair dali o mais rápido possível.
- Mas o que é que houve ? A moça não...?
- Não, é que esse tipo de mulher...Depois isso de ter que pagar...
Ao que o Amarante responde, com todo o seu carinho paternal:
- Meu amigo, essas moças... elas são moças, também, você sabia ? São filhas e mães e irmãs, ora... Estão batalhando pela vida. Você tem que conversar com elas...
- Mas fazer amizade ?
- É, por que não ? Até pra poder se divertir...
E sugestivamente acrescentou:
- Ó, elas sempre me dão muito mais do que eu peço...Depois, não custa nada ser gentil...
Coitado do Timóteo. Ele ouviu. Obedeceu.
Semana seguinte lá está ele no bordel de papo com a mulata. E na outra semana, e depois, e no outro dia, e ... Pronto, lá vai o policial entrando acompanhado no cinema, e no parquinho, e na igreja.
Coitado. Mas também, quem mandou casar ? Agora a mulher não se aguenta em casa e quer voltar a trabalhar. Ele sofre como louco, imagina, policial com mulher na zona!
Ah, mas quem mandou ? Não era pra casar, era só pra conversar!
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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

algo está fora da ordem (artigo publicado no JB em 14/09/09)

Perguntada a respeito de trabalho e família, a moça respondeu, meio sem pensar: “Tudo em ordem. Por enquanto”.
Ora, tudo na vida é “por enquanto”. A própria vida só é “por enquanto”, efemeridade que nos leva ao desejo mais do que justo de alongá-la. E que nos traz perplexidade sempre que é interrompida. Quando essa interrupção se dá precocemente, com mais razão ainda nos indignamos. Mas, de modo geral, principalmente nos casos de acidentes e doenças, em que a morte é muitas vezes atribuída a “causas naturais”, acabamos tendo que nos conformar e considerar essas perdas como “fatalidade”.
No entanto, quando a vida de um jovem é interrompida pela ação violenta de um outro ser humano, e por um motivo absolutamente torpe, esta morte não pode ser considerada “natural” e não podemos deixar de sentir revolta e indignação, não podemos nos conformar. Frente à notícia de que um rapaz de 15 anos foi morto por causa de um celular, não é possível aceitar nem o discurso da “fatalidade”, nem a explicação oficial dada para outros fatos recentes, de que se trata de uma “resposta dos traficantes às ocupações dos morros do Rio”.
Se, neste mês de setembro, o conjunto de atos violentos – arrastão no Túnel Zuzu Angel, tentativa de arrastão no Túnel Velho, sequestro e tentativa de assalto em Copacabana, repressão à manifestação dos professores, assalto com reféns à Igreja de Sant'Ana – é, por si só, assustador, a morte de Luiz Gabriel de Jesus Correia, assassinado em Bangu quando ia a uma festa organizada pela igreja, aparece como sintoma da barbárie.
Quanto custa um celular? Quanto custa uma vida?
“As pessoas estão morrendo a troco de nada. Perdeu-se a noção do que vale a pena e do que não vale”, desabafou o pai do jovem.
A falta de uma resposta firme por parte das autoridades competentes e a inexistência de um movimento coletivo contra o descalabro constituído por essa realidade, além do sentimento de que a questão da segurança fugiu do controle, nos trazem a terrível certeza de que algo muito sério está fora da ordem. E que diz respeito ao valor que atribuímos à vida.
Priorizar a vida implica em rever a importância das pessoas e dos objetos; solicita maior participação em ações coletivas, exige escolher melhor em quem votar e cobrar resultados. Da parte dos governantes, priorizar a vida passa por medidas que promovam efetivamente a paz e a justiça, com a redução das desigualdades, a melhoria dos serviços públicos, a democratização do acesso aos bens culturais, a agilização da Justiça, o controle da venda de armas, o treinamento de uma polícia bem equipada.
É preciso urgentemente construir um caminho que nos permita chegar um pouco mais perto daquilo que o Dicionário Aurélio oferece para o verbete PAZ:
1. Ausência de lutas, violências ou perturbações sociais; tranqüilidade pública; concórdia, harmonia.
2. Ausência de conflitos entre pessoas; bom entendimento; entendimento, harmonia.
3.Ausência de conflitos íntimos; tranqüilidade de alma; sossego.
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quarta-feira, 19 de agosto de 2009

ressaca

e depois daquela noite tão curta, tão maldormida, acordou de ressaca sabendo que tinha que levantar - era sábado, sete e meia da manhã, as ruas desertas e a cabeça latejando não ajudava. Sabia que tinha que ir, não lembrava muito bem pra onde, Botafogo,sim, é isso, e o ônibus acelerado quase não pára - claro, seus reflexos estão lentos, mas sabe que é movida pelo compromisso assumido. Desce do coletivo sem certeza do ponto, só sabe que procura um casarão antigo em uma rua transversal... e percebe o mesmo rapaz que antes travessou na frente do ônibus, agora caminhando em sua direção. Olha para os lados e o comércio ainda está fechado, que ideia, por que é que tinha que ser hoje! Começa a andar mais rápido e o medo já lhe encurta a respiração, a cabeça pesa, lembra que tem pouco dinheiro na bolsa, mas nem por isso será presa fácil, entra na primeira rua sem saber que era sem saída. Sem saída, mesmo, o cara está quase em cima quando ela se resolve pelo enfrentamento:
- Mas o que é que há? São 8 da manhã, eu não dormi e não tem um puto na minha carteira. Nem celular eu trouxe, vai querer o quê?
Ele se assusta e, quase pedindo desculpas diz, numa sem-gracice infinita:
- É que o seu vestido está preso na calcinha, a sua... sua perna está aparecendo, eu só queria avisar...
Quis morrer, quis sumir. Não fez nada disso, rapidamente se ajeitou e foi se desculpando:
- Ah, é que eu tô meio tonta...
Mas foi aí que se lembrou:
- É isso, é que há doze horas eu não como nada, tenho que fazer um maldito exame. Você sabe onde é que fica o laboratório ?
- Colesterol ?
Claro, ele sabia tudo.


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segunda-feira, 27 de julho de 2009

hora de evoluir (artigo publicado no JB em 20/07/09)

Enquanto esperamos o sinal abrir, o menino desembrulha o picolé que acabou de comprar. Sem a menor cerimônia, sem ao menos procurar por uma lixeira - que estava do lado, acoplada ao próprio poste do semáforo - joga a embalagem no chão, a meio metro de seus pés. Não é impressionante ? Sim, porque afastar a sujeira de perto é um comportamento instintivo, faz parte da camada mais primitiva da nossa complexa construção como seres humanos. Impressionante, porque seria razoável esperar que os pais, a escola, os meios de comunicação, enfim, nós, a sociedade, tivéssemos conquistado, com esse garoto de uns doze anos, uma elaboração civilizatória um pouquinho mais avançada.
Lembro dos filhotes de beija-flor no jardim: com poucos dias de vida, voltam o traseiro para fora do ninho e fazem suas necessidades lançando-as sobre as plantas em volta, a um palmo de distância. Claro, são animais limpos, não querem conviver com mau cheiro e sujeira. A camada mais primitiva se faz presente. Mas esse resíduo orgânico, em quantidades irrisórias, é rapidamente absorvido pelo ambiente, auxiliando na adubagem do jardim. Já os nossos “restos”... compostos por sobras de alimentos, embalagens, papéis, plásticos, vidros, etc., têm absorção mais difícil ou mesmo impossível, em alguns casos implicando efeitos de contaminação prejudiciais à vida. Isso, fora a parte do lixo que é industrial, hospitalar, agrícola, tecnológica, muitas vezes tóxica, em quantidades absurdamente monumentais: a quantidade de lixo produzida por um ser humano em uma semana é, em média, igual a 5 Kg. Só o Brasil produz 240 mil toneladas de lixo por dia. POR DIA!
Bem, nada disso é novidade, já que a questão ecológica há muito extrapolou os círculos acadêmicos e hoje está entre as prioridades para todos os níveis de governo. No entanto, ainda há adultos que jogam lixo pela janela do ônibus em pleno centro do Rio de Janeiro. Não é impressionante ? Pois com cerca de 100.000 lixeiras espalhadas em pontos estratégicos, 40% das 8.800 toneladas de lixo que a Comlurb recolhe diariamente em toda a cidade, são retirados das ruas.
Impressionante, porque nosso lixo é, de alguma forma, reflexo do que somos - afinal, o que uma pessoa joga fora e como o faz, diz muito sobre quem ela é. Sem dúvida, ainda há muito a fazer para conquistarmos um grau mais alto de civilidade, já que o conceito de bem coletivo, a educação mais elementar a respeito da cidadania e do cuidado com o meio ambiente, ainda não existem de forma disseminada sequer entre nós, os adultos.
Mas se nem todos têm as informações necessárias para reduzir, reaproveitar, reciclar o seu lixo - que é nosso ! - não podemos fazer concessões aos comportamentos primitivos que nos atingem. A esta altura do campeonato, ninguém tem o direito de se negar ao mínimo: jogar o lixo no lixo !

Fontes:
www.ajudabrasil.org e http://comlurb.rio.rj.gov.br

terça-feira, 16 de junho de 2009

fulana ? fulana não anda de ônibus ! (artigo publicado no JB em 31/05/09)

O comentário, entreouvido da conversa no banco da frente, reflete um comportamento antiquado, mas ainda presente em classes mais abastadas. “Fulana não anda de ônibus” significa que, por seu nível econômico, “Fulana” se coloca em posição superior e não se sujeita a unir-se ao restante da população na sofrida rotina de deslocamentos urbanos. Apesar da crítica, da fala também se deduz a inveja do velho ideal da condução própria, como se o uso do coletivo fosse degradante, mostra de limitada ou decadente situação econômica e, portanto, negar-se a usá-lo seria luxo para poucos. Seja qual for o motivo real para recusar-se a tomar ônibus, a verdade é que a locomoção nos coletivos costuma ser longa e penosa. Na maioria das cidades brasileiras, até algum tempo atrás, conforto, certeza de horários e higiene só eram possíveis mesmo de carro. Ocorre que, durante décadas, implementou-se no país a escolha política de abrir estradas e avenidas, com um estímulo permanente às montadoras e aos consumidores, seja por meio da redução de impostos, seja através de financiamentos; política apoiada em uma visão distorcida de “progresso” e associada a uma publicidade enganosa que até hoje liga valores como juventude, saúde e vitalidade a veículos poluentes e cada vez mais perigosos. Vivemos agora as tristes consequências desta “sociedade do automóvel”: o caos no trânsito paralisa e polui as metrópoles; carros velozes andam cada vez mais devagar, presos em engarrafamentos quilométricos. A catástrofe ambiental, a descoberta de que os recursos minerais são limitados e o crescimento da população nos obrigam a repensar o modelo. As poucas medidas tomadas ainda são bastante tímidas ou paliativas, como a construção de ciclovias e a introdução de esquemas de rodízios, por exemplo. Paralelamente às formas alternativas, há necessidade urgente de mudanças profundas que priorizem efetivamente o transporte coletivo, de modo que a melhoria da qualidade torne seus serviços confiáveis e preferíveis em relação ao veículo particular. Quando produzirmos essa mudança na cultura, será o fim dos engarrafamentos. Aí então, “Fulanas” – e “Fulanos”, é claro – se surpreenderão com a delícia que é não ter que procurar vaga, não ser multado nem discutir com flanelinhas; ler um livro no metrô, olhar a cidade pela janela do ônibus, ir e voltar do trabalho em menos tempo e em paz. Quem sabe, poderão até descobrir que o mais ecológico, a melhor forma de preservar a cidade limpa, ver amigos e manter a saúde do corpinho, chique, mesmo, é andar a pé. Ou de bicicleta.
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terça-feira, 12 de maio de 2009

as meninas, não ! (monólogo teatral)

(Para a plateia) Ah, cês estão aí. Bom, que cês estão aqui. Nem sei o que ia ser de mim sem ocês aqui. Tão quietinhas. Tão quentinhas. Cês tão quentinhas ? Ficam só olhando a gente... essa carinha inocente. Ó os olhinhos esbugalhados da Marelinda. Assustada, desde que nasceu... E a Fininha ? Vive pelos cantos. Tá sempre bisbilhotando alguma coisa. E ocê, Angola, já teve filhote, já ? E cadê o angolinho, que eu não tô vendo ? Ah, já dormiu. Bom. A Branquela é que não larga, vive com aquele frangote debaixo da asa. Ói, dona Ruiva, e ocê ? Bem te peguei outro dia passando por baixo da cerca, foi ou não foi ? Eu bem te vi. Tô acompanhando, pensa que não ? Aquele é um garnizé, vê lá.
Ah, o Zé... Pois outro dia veio aqui a mãe do Zé. Ocê lembra, Pintada ? Ui, que frio na espinha, que vade retro de mau agouro. Aquilo é o demo. O que é que queria... almoçar, ora essa. Tá me olhando... Claro que não, nem morta, que eu só vivo é por causa d´ocês, como é que eu ía poder ? Ô louco ! A vida... assim que é: ocê pensa em nada, vai vivendo, um dia vai, a mão te leva. Ocê nem vê, mal sabe. Tão rápido, instantinho de nada e o que era inda agora, já não é mais, vai-se embora num suspiro...Ocês aproveita, vai aproveitando, que um dia...
Ahh, pois aquele dia, a danada bem veio me espetar. Arre ! Que jeito que eu dei ? Lembra, não ? Questão de vida ou morte. Fui pegando: dá os ovos todo, gente, dá aqui, passa. O que cê pôs ainda agorinha, passa prá cá também. Desapega. Ou quer virar cabidela ? Ah, vai entregando, desespero, era o ovo ou a panela. Saí lá com o avental cheio, gritei bem que era pro Zé ouvir também: ói, dona sogra, quer comer porco, não ? quer comer linguiça, não ? Pois vai comer uma baita omelete. É isso mesmo. Que eu não sou assassina, e as minhas meninas ninguém põe na panela ! Ou me põe junto, quero ver !
Pois foi assim. Bom, que cês tão aqui.


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segunda-feira, 11 de maio de 2009

camelôs e camaleões (artigo publicado no JB em 03/05/09

O espaço para a circulação dos pedestres foi ampliado, algumas barracas sumiram. A moça que vendia biscoitos a granel, numa tenda grande, agora tem um banquinho onde coloca saquinhos de 100g de biscoitos já pesados. O que antes era um balcão largo onde se vendia água de coco, agora é uma mesinha alta onde fica a serpentina - o isopor com gelo é escondido atrás da árvore, um pouco mais longe. A barraca de frutas foi substituída por um aramado com capas de DVDs e programas piratas de computador. A troca só faz sentido na lógica do “rapa”: mais fácil correr e fugir, mais leves, não perecíveis. Além disso, os discos propriamente ditos estão sempre a salvo.
A transformação lembrou-me Darwin e sua teoria: sobrevivem os que melhor se adaptam a mudanças...
Na esquina perto de casa, essas tinham sido, até ontem, as consequências visíveis do choque de ordem desencadeado pela prefeitura. Hoje, menos de 4 meses depois do seu início, a barraca de frutas está de volta.
Não há dúvida de que o espaço público precisa ser ordenado: é imperativo o cumprimento das leis e o respeito às normas de convivência urbana. Porém, no que se refere ao comércio ilegal, atitudes repressivas, apenas, não resolvem. Não adianta afirmar a ilegalidade e caçar os criminosos, sem oferecer nenhuma alternativa para o sustento legal das famílias envolvidas. A gestão anterior começou e terminou levando a guarda municipal a tristes e vergonhosas batalhas que não trouxeram avanço algum. É claro que nenhuma prefeitura pode dispor de efetivo suficiente para fiscalizar permanentemente todas as ruas, de todos os bairros. Além disso, a crise econômica e o desemprego devem ampliar o número de pessoas que buscam a sobrevivência desse modo.
Questão complexa não tem soluções simples. Se quiser de fato resolver o problema, a equipe deste governo terá que dialogar com associações de moradores, associações de lojistas e com os próprios ambulantes, para conseguir encontrar, dentro da lei, as formas mais criativas, mais benéficas para a cidade e menos lesivas para as partes envolvidas. O dado positivo é que a prefeitura parece dar sinais de abertura: há no ar uma sugestão para a transformação dos comerciantes em microempresários, o que ainda merece estudos, mas a idéia em si já traz um olhar novo, que propicia a inclusão. Também a reordenação do Largo da Carioca, no Centro, mantendo uma área onde o exercício legal dos cadastrados é possível, foi uma iniciativa diferente da repressão pura e simples. No entanto, é preciso que a definição de espaços tenha por base acordos que possam efetivamente ser respeitados. Do contrário, a infinita criatividade dos camelôs cariocas, estimulada pela necessidade de sobrevivência, poderá ser capaz de driblar todos os planos.
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queda

Cheia de decisão, tomou um banho caprichado, escolheu um de seus melhores vestidos, arrumou-se toda e lá foi ela, toda animada, rumo ao centro da cidade. Perto da Candelária desceu do ônibus. Viu que o sinal para os pedestres já piscava, mas tinha pressa, acreditava que aquele era o grande dia, afinal, chegara o grande momento. Tudo ia mudar, sim, daquele dia em diante. Resolveu correr. Não deu três passos e caiu estatelada em plena avenida Presidente Vargas. Um tombo pra ninguém botar defeito: mergulhou de cara no asfalto. Uma queda em público, em alta velocidade, sem disfarce possível. Deitada no meio da rua, pensava na bolsa, na saia, nas sandálias, na vergonha.
Então o sinal abriu, os motores bufaram acelerados.
Algumas pessoas se aproximaram, entre penalizadas e curiosas: “Que loucura, querer atravessar assim”, “Ai, coitada, está sangrando”, “Por aqui, senhora, apoie aqui”, “Rápido, senhora, levante-se, os carros !”.
Machucou o rosto, as mãos, arranhou os braços e as pernas, abriu uma ferida em cada joelho. Ficou imunda, horrível. Mas o que mais a feriu, o que mais fundo lhe doeu no coração, foi ser chamada de “senhora”.
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terça-feira, 7 de abril de 2009

ecológica

Dia desses encontrei Juliana, amiga que não via há muitos anos.
- E aí, casada ?
- Separei. Melhor coisa !
Concordo que às vezes, é, mesmo, a melhor solução. Nem sempre temos maturidade pra seguir em frente, nem sempre estamos com a pessoa certa, nem sempre estar com alguém é o melhor caminho para nosso crescimento... Mas assumir a solidão também não é nada fácil. Como a Juliana não era essa coragem toda, mas antes, era do tipo que não parava quieta e vibrava com histórias de paquera e sedução, pergunto, meio surpresa com a novidade:
- Mas você tá sozinha, mesmo, ou tem novidades ?
- Ãhn... Mais ou menos... Ela responde, misteriosa.
Como, mais ou menos ? Amor novo ou não ? Um caso, um affair, um “ficante”, um “peguete” ? Tento não julgar e me fazer moderninha usando termos da moda.
Ela balança a cabeça e continua no mistério:
- Sim e não.
Ah, vou ficando irritada, quer contar ou não ?
-Ih, calma ! É que é novidade, sim, mas com um cara antigo.
Já fiquei interessada. Embora digam que “figurinha repetida não completa álbum”, eu gostei da idéia de uma recaída porque, no caso da Juliana, podia ser a possibilidade de uma ligação mais duradoura.
- Virei amante !
Ai, meu deus, o cara é casado. Lá vem complicação...
- Fiz um upgrade: passei de esposa para amante.
De esposa para amante é um nível acima, é ? Pois há controvérsias...
- Agora sou amante do meu ex-marido.
Quase caí pra trás. Do Rafa ? Você é amante do Rafa ?
- Pra você ver, o mundo dá voltas, ô ! A gente separou, ele casou de novo, duas semanas depois me ligou pra ir lá conhecer o novo apartamento. Pronto, a melhor coisa que a gente fez. Ninguém enche o saco, a gente já se conhece, já sabe o que que funciona e o que não dá certo.
- Mas e a mulher dele ?
- A Luciana é ótima, não dá trabalho nenhum.
Não resisto, acabo perguntando:
- Ela sabe ?
- Claro que não. Mas essa é a área dele, não tenho nada com isso. Não é moderno ?
É, Juju, tô achando beeem moderno, ecológico, até: reduzir, reciclar, reaproveitar, repensar.

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segunda-feira, 30 de março de 2009

outro lagarto

Vi que o lagarto dentro de casa era sinal de alguma coisa. Porque é
algo tão inusitado que a gente fica pensando. Eu, pelo menos, tenho
essa mania. De pensar. De achar que o mundo fica o tempo todo
mandando sinais. O problema é descobrir do quê !
No começo fiquei muito contente, achei que era símbolo de riqueza.
Tentei lembrar se tinha visto algum iguana em escudos ou bandeiras
ou brasões. Nada. Só me vinha “O sorriso do lagarto”, livro do João
Ubaldo Ribeiro. Mas lá o significado é altamente negativo, ligado a
dissimulação e perversidade. Demorei uns 3 dias até concordar que
aquela é que era a imagem...
No primeiro dia, quando descobri o animal, tomei um susto. O
danado era uma estátua entre as plantas, completamente imóvel, se
fingindo de samambaia. No segundo dia não estava mais lá. Logo,
um novo susto: paradinho, em outro vaso, outra posição, mais perto
da entrada da casa. No dia seguinte, novamente me assustei: quieto,
quase no muro, como quem vai embora. Fiquei até satisfeita: que ele
reencontre o seu lugar na floresta. Melhor assim, pensei. Mas no dia
seguinte, outro susto: estava num vaso baixo, pertíssimo de mim e
da entrada da cozinha. Então senti a presença traiçoeira e
ameaçadora.
Nesses tempos eu me envolvia com um rapaz muito simpático, muito
sedutor e coisa e tal, mas que aos poucos vinha se tornando algo...
grudento, digamos assim. Mudava de repente de idéia, sem ser
convidado, aparecia do nada em horários inconvenientes... Um susto
que se repetia, evasivas escorregadias, imprevistos, dissimulação...
Um sinal.
Pois no dia seguinte acordei como no meio de um sonho: era urgente
a necessidade de expulsá-lo antes que transformasse minha vida
num inferno. Já imaginou um ser desses dentro de casa ? Já pensou
dar de cara com ele em qualquer lugar onde – e quando – você
menos espera ?
Me armei de coragem e expulsei os dois. Um de manhã, com
vassoura e pá. E inseticida, por via das dúvidas. O outro à noite, na
conversa.
Não digo que não doeu. Lagarto é parente da serpente, bicho sempre
sedutor. Mas um animal selvagem querendo casa e conforto, pode ?
O mais engraçado – e difícil – é a reação indignadíssima que assume
quando desalojado, como se fosse uma enorme injustiça. Pois virava
a cabeça pra trás, abria a boca, rosnava. Custei, tive que endurecer o
coração pra fazê-lo atravessar a rua e voltar pra floresta.
Depois lembrei de um outro cara parecido, de anos atrás. Era meio
surdo, como este. Isso é uma característica dos répteis ?

terça-feira, 24 de março de 2009

surpresa

Aconteceu que as duas garotas tomavam café na lanchonete e o Seu Nestor, ao tirar o celular do bolso, deixou cair a camisinha. Teresa viu a embalagem quadrada reluzindo no chão. Assombradísima, olhou prá cara do velho – ora, não tão velho, estava entre os 60 e os 70 - que falava distraído ao telefone. Meio semgraça, Teresa cutuca a amiga, talvez prá perguntar o que deveriam fazer. Luzia não entende nem o sinal, nem as piscadelas, nem os movimentos de queixo. Luzia só toma o seu café.
Em pleno shopping, a embalagem azul metálico contrasta com o piso branco de mármore, chamando a atenção de todos os que entram: alguns riem, olham em volta, procuram o dono ou a chance de compartilhar o inusitado, outros ficam constrangidos, fingem ignorar. Uns pulam, outros dão a volta; há ainda os que recuam e mudam de direção. Seu Nestor, completamente aéreo, desliga o telefone. É a balconista que, sem acreditar muito no que vê, resolve a situação: dá a volta no balcão e vem pegar o preservativo.
A Teresa não resiste: Tá fechada ?
A balconista, sorrindo esperançosa: Tá, novinha.
Pensativa, guarda o envelope no sutiã.
À noite, avistando o Zé Miguel na subida de casa, deixa cair a camisinha. Finge que ri, chama a atenção dele, apontando.
Ela: Ói, Zé, não pisa ! Ocê sabe lá o que é isso ?
Zé: Ué, sei, sim.
Ela: E ocê sabe usar ?
O Zé sorri de orelha a orelha, nem precisou responder.
À mesma hora, o coitado do Seu Nestor passa um aperto feio. A moça seminua à espera, o efeito visível da pílula azul, ele apalpa os bolsos, revira a calça, a camisa, as meias, os sapatos. Nada. Mas, como ?!
Ô, Teresa ! Não podia ter avisado ?

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papéis

Por acaso, naquela noite carregava mais dinheiro na bolsa. Meio preocupada, um pouco antes de chegar ao ponto final, ela deu uma olhada para os últimos bancos do ônibus. Ficou olhando os três passageiros até que o rapaz do meio a viu. Os dois se encararam alguns segundos, o suficiente para que a cena fosse armada: ela apertou a bolsa contra o corpo, fechou os olhos rezando e quando os abriu novamente, ele devolveu com um sorriso e o olhar de quem entendeu.
A moça tentou se acalmar, fingindo naturalidade. Deu boa noite ao fiscal, caminhou para a frente sem se virar e assim que se sentiu protegida pela curva da escadaria, acelerou o mais que pode. Eram umas dez e meia, a escada mal iluminada estava deserta e não deu outra: em seguida ele já estava alguns degraus atrás dela. São cento e doze, já sentia o coração na boca, mas o preparo físico e o conhecimento do terreno estavam a seu favor. Quando passou pela guarita sentiu algum alívio, falta pouco, mas logo à frente ouviu o tom de ameaça com que ele se dirigiu ao vigia. Foi tirando as chaves da bolsa, quase sentia a sombra dele nas suas costas, faltava pouco, muito pouco e foi como um furacão que abriu a porta de ferro, depois a de proteção do hall e finalmente a da casa.
Nem acendeu a luz. Foi curiosa ver o rapaz passando embaixo da sua janela. Sentada no sofá, levou um susto com o grito que ele deu com o choque da cerca elétrica sobre o muro do quintal. Ouviu algum comentário irônico do vigia.
Aliviada, tirou o dinheiro da bolsa, contou.
Mas não conseguiu dormir. Tinha sido responsável pela cena; ela é que o fizera assumir aquele papel.
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cena final

Wander entra apressado, vestido como Hamlet, abre uma porta estreita, entra e fecha.
- Ah ! Finalmente. Acabou.
Márcio entra rápido,vestido como Horácio. Sussurra, nervoso:
- Wander ! Você tá aí, Wander ?
- Não. Me deixa em paz. Ser ou não ser, ufff !... Márcio... Não, olha, eu não sou.
- Mas você tá louco ? A gente tá em cena, Wander, é o grand final, e você é o Hamlet !
- A minha cena agora é essa, ó.
Ouve-se um som algo escatológico. Márcio se afasta da porta, aproxima-se da coxia, ouvindo:
- Meu deus ! A fala do rei tá quase no fim, não sei como é que eles... vão ter improvisar !... Wander, tá ouvindo ?
- Esta noite eles que improvisem ! Quer saber ? Tô melhor assim. Ah ! Você não sabe o que é enfrentar a morte todo dia, ter que matar, ter que morrer e ainda ver a mãe morrer, aqueles corpos todos caídos...
- Mas é teatro, Wander ! Teatrinho, cara !
- Não, eu não tenho sangue de barata, eu não posso mais...
Márcio começa a esmurrar e chutar a porta.
- Porra, cara, isso é sacanagem ! Como é que a gente ensaia dois meses, enfrenta toda a dureza que foi e hoje, porra, hoje, estréia, teatro lotado, você inventa essa de sair de cena no 5º. Ato !!!
Ouve-se som de trombetas.
Márcio chuta a porta violentamente.
- O duelo ! Wander, pelo amor de deus, por amor ao teatro, sai daí. Pelo menos prá acabar a peça !
A porta se entrabre lentamente, aparece apenas a mão de Wander com uma espada:
- Tu és Hamlet. Vai.
Márcio pega a espada, a porta se fecha. Ele se apruma e sai.
Wander coloca o figurino em cima da porta. Apenas de cueca, avança para o espelho. Respira aliviado, pensativo. Olha para a coxia da esquerda, sai para a direita.
Blackout.
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terça-feira, 17 de março de 2009

iguana

Caminhava com uma amiga pelas Paineiras, quando ouvimos uma movimentação intensa nas folhagens, logo ao lado. Estancamos em pânico. Afinal, éramos duas mulheres, a estrada semideserta, pouco policiamento, os noticiários, o tráfico, enfim.
- Ai, meu deus !
Nada. Bicho.
Depois rimos: Nossa, a gente anda de um jeito ! É, qualquer coisinha... meu coração até parou ! Que susto. Que bobagem. Pois é, a floresta, a gente desacostuma. Só não pode ser cobra !
- É...
Marta, pensativa, lembrou do iguana. Do seu inesquecível encontro com o iguana.
Há muitos anos, quando ainda jovem, acampava com amigos em Muriqui. Necessitando privacidade de ordem fisiológica, afastou-se um pouco das barracas – não sem uma confusa mescla de medo e heroísmo feminista, algo entre a Jane do Tarzan e a Rosa Luxemburgo. Remediado o problema, lá vem Marta de volta, feliz e distraída, quando se depara com o bicho atravessando a trilha. Por algum mistério, intuição ou processo maluco de identificação, ela achou que o iguana era fêmea. Que talvez estivesse, como ela, retornando ao seu grupo, etc. Bem, seja. As duas se viram. As duas pararam imediatamente, uma no caminho da outra.
E agora ? O que fazer, meu deus ? Impossível gritar, a paralisia foi total. Rapidamente consulta seus arquivos internos, revolve a memória em busca de uma saída: o que é que eu sei sobre iguanas ? o que é que se pode fazer num momento como este ? Avançar, pular ? Recuar ? Entrar pelo mato ? Ô, meu deus...
Petrificada frente ao animal, suando em bicas, os neurônios a mil, a referência encontrada em seus alfarrábios é “A Noite do Iguana”, peça de Tennessee Williams. Acontece uma morte trágica, um assassinato – ela vai se lembrando sem tirar os olhos do monstro à sua frente. O cara, protagonista, é morto de noite – claro, está no título – mas na calada da noite, de modo que não se sabe quem foi. Aos poucos se vai descobrindo que todos na cidade participaram. E pior, depois a gente vem a saber que ele foi linchado por ser gay, mas a versão oficial que é dada, e que todos aceitam, é de que foi devorado pelos iguanas. Aos poucos também ela se recorda: Ah, é porque era uma região onde havia muitos lagartos, é isso. Por isso é que se chama “A Noite do Iguana”. Parada no meio da trilha, revê o filme inteiro em alguns segundos. Ou alguns minutos. Perdeu a noção do tempo. No êxtase das imagens, perseguindo o frágil fio da memória, Marta saiu do ar. No final, até entendeu melhor algumas passagens da peça.
Quando voltou a si, o caminho estava livre. Vai ver, a coleguinha cansou da brincadeira.

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sexta-feira, 13 de março de 2009

azar

Diz um amigo que o problema da traição conjugal é a mentira que é preciso inventar. Como mentira tem perna curta... a pessoa acaba tendo que inventar outra, para cobrir as falhas da anterior, e mais uma, e outra, até que se descobre tudo. Ou até que esse trabalho todo acabe não compensando a pulada de cerca. Aí, depende da criatividade do sujeito. Ou dos atrativos do(a) amante.
Para o Claudionor isso não era questão, já que sempre tinha viagens a trabalho. Vivia bem com a Neidinha, voltava saudoso, as crianças cresciam em paz. O casamento em perfeita harmonia.
Apesar disso, não era com facilidade que seu Ezequiel, pai da Neidinha, engolia as constantes viagens do genro.
Aconteceu um dia que o sogro teve que ir a Saquarema tratar da venda de um imóvel. Resolvido rapidamente o negócio, dispôs de tempo para um passeio a beiramar. Azar. Viu ao longe, lá na areia da praia semideserta, em pleno dia de semana. Viu e reconheceu. Teve que se esconder entre as poucas barracas para descobrir a companhia de Claudionor. Sempre suspeitara da traição, imaginava o genro com uma vizinha do mesmo prédio, ou da rua, talvez alguma amiga da Neidinha ou até mesmo uma prima que ciscava por perto. Pois o sogro quase enfartou quando viu, entre cadeiras e toalhas, o modo carinhoso com que Claudionor se aconchegava com o esbelto rapaz.
Não fez nada. Só ligou pedindo à filha que viesse encontrá-lo. E a levou em silêncio para contemplar aquela paisagem.
Azar, puro azar.


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cornitude

- Algum dia todos fomos, somos ou seremos traídos, é inevitável. A diferença fundamental é a pessoa vivenciar ou não o sentimento do chifre. Eis a questão.
A idéia da “cornitude” como estado de espírito é plataforma do Renato: o cara pode ser corno e sequer suspeitar de sua situação, não sofrendo, portanto, as viscerais dores da traição, ou ao contrário, pode nem estar, de fato, sendo passado prá trás, e viver diariamente o doentio ciúme ao vislumbrar persistente galharia na fronte cada vez que se olha no espelho.
Por exemplo, o caso do Cristiano, seu amigo íntimo na adolescência. Vizinhos de bairro, de jogos, de aventuras e estrepolias. No início da fase adulta, um para a faculdade, o outro, para a escola técnica, aos poucos foram se distanciando até que a família do Cristiano se mudou, Renato se casou, etc., perderam-se de vista.
Muitos anos mais tarde, ao sair do trabalho num dia de chuva, Renato oferece carona a uma moça da mesma empresa. Gabriela. Encantadora. O encontro se repete algumas vezes, ora por acaso, ora, não, e acabam engrenando namoro. Tempo depois ela revela que é casada. Sem problema, basta serem discretos. O nome do marido ? Cristiano. Muita coincidência, mas ele é assim, assim ? Fez escola técnica ? Morou em S. Cristóvão ? Bem, é ele. Sem problema, basta serem discretos, isso dá até um tempero novo, é tudo divertido e o caso dura anos. Até que um dia Gabriela é atropelada quase na porta da empresa. Enquanto a ambulância a leva ao hospital, o chefe pede que Renato leve os documentos ao marido. Não havia como recusar.
Quando Cristiano abre a porta...
Quando Cristiano abre a porta:
- Renato !
O amigo de infância mostra os documentos dela – coincidência, mesma empresa... Eles se abraçam longamente, o marido chora emocionado:
- Quanto tempo, meu deus, que falta você faz !
O amante, constrangidíssimo:
- Parece que ela só quebrou duas costelas, uns arranhões, fica boa logo.
O amigo insiste numa cerveja, aquele reencontro é um dia especial, depois de...20 ? 30 anos ? Renato tem pressa, tem que voltar pro expediente, quem sabe, um outro dia.
Depois da alta, Gabriela ainda o procurou muitas vezes.
Não, nunca mais.


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perdeu, playboy

Marcos e Simone viveram uma paixão intensa, ficaram juntos umas duas ou três semanas, o suficiente para depois ele sumir e ela ficar perdidamente apaixonada. Depois de ligar insistentemente prá casa, pro celular e pro trabalho dele, deixar dezenas de recados e emails, ela afinal entendeu.
Nunca mais se viram.
No ano seguinte eles se reencontram, no lugar mais improvável: em pleno carnaval, no meio de um bloco. Marcos, sozinho, perdido no meio da multidão, levanta os braços para o céu, agradecendo, abre um sorriso enorme, já imaginando ali a salvação do seu carnaval.
- Nossa, há quanto tempo !
- È, faz muito tempo, né ?
- E aí, tudo bem com você ?
- Tudo ótimo. E você ?
- Puxa, a gente nunca mais se viu !
- Pois é, você sumiu...
- Mas agora eu voltei !
Nisso se aproxima o Flávio, o atual. Discretamente dão–se as mãos. Ela os apresenta. Depois vira-se para o namorado e fala, bem alto:
- É aquele cara que eu te contei.
Volta-se para o “ex” e mostra as mãos entrelaçadas. Marcos sente que acabaram suas chances. Mas eis que ela o abraça, colando o rosto ao seu. Ele vislumbra uma excitante possibilidade, até que ela sussurra ao seu ouvido:
- Perdeu, playboy.
Angelical, ela sorri, adorando ver a carinha desenxabida do Marcos.
Foi um ótimo carnaval.

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