terça-feira, 29 de março de 2011

simples mágica

Naquela noite tinha uma estreia badalada, mas estava exausta. ainda assim, antes de subir pra casa fui ver minhas sobrinhas. saudades. a maior não me deu a menor chance, mas Antonia, que aos 3 anos procurava alguma ordenação para suas “Babuskas” – aquelas bonecas que entram umas dentro das outras - me aceitou como ajudante. muito provavelmente, porque a tarefa era bem complicada: várias metades abertas, as cabeças afastadas das pernas, todas espalhadas, algumas invertidas, outras deitadas, peças faltando. fomos conversando, tentando encaixar as partes:
- onde estão as pernas dessa daqui?
- perdeu.
- onde que perdeu? vamos procurar.
- não, perdeu não, eu joguei fora. jogueeeei. (acompanha gesto indecifrável)
- você jogou fora, Antonia? por quê?
- a mamãe falou que não podia jogar na janela, daí eu joguei.
tá certo. provou que podia.

Comecei a enfileirar as bonecas em ordem decrescente.
- nãããão!!! não é assim.
-não?
ela pegou a menor bonequinha, abriu a maior e jogou a pequena dentro.
- pronto. a filhinha tá dentro da mamãe.
- e as outras?
- as outras ficam brincando aí.
e encerrou a brincadeira, completamente satisfeita com o resultado.

Em seguida ela acha na gaveta uma “Barbie” com rabo de peixe, me mostra:
- eu sou ela.
adoro essa frase. é babando que respondo:
- que linda, uma sereia! então você vai nadar pelos mares e encontrar um monte de peixinhos...
ela não se faz de rogada e já circula pelo quarto mergulhando com a Barbie-sereia numa mão e remando com a outra. eu continuo alimentando com história de conchinhas e espumas, até que ela pára de repente e pergunta a queima-roupa:
- você é quem?
sou pega de surpresa e em fração de segundos tenho que decidir minha vida: onde estamos? qual o plano narrativo? será que ela não sabe, será que me esqueceu? devo explicar que sou a tia, que já estive...ela aguarda enquanto eu me desespero – deus, qual a resposta correta? eu me procuro olhando em volta e enfim escolho uma boneca de asas azuis.
- eu sou uma borboleta!
ela sorri, surpresa.
estou salva e agora dançamos as duas pelo quarto: atravesso nuvens riscando o céu com minhas asas enquanto Antonia sereia desvenda oceanos de fantasia.
mágico. simples assim.
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segunda-feira, 21 de março de 2011

humanos

Há os que de longe já se vê, há os que pedem maior proximidade...Ninguém é normal.

Mulheres também, claro, mas tenho encontrado principalmente homens assim. Um peito estufado que não desincha nem na expiração, um queixo levantado, o olhar por cima, uma expressão que passeia entre a arrogância, o desprezo e uma pseudo paciência para com os outros, como se a verdade sobre a vida e o mundo fosse, indiscutivelmente, parte de seu patrimônio exclusivo. A mim, simples mortal, quase carmelita descalça, como dizem, soam estranhos esses ares de poder. Talvez nem tanto pela pretensão. Mais pelo que me parece uma escolha sinceramente equivocada, essa opção pela feiúra, por distanciar-se da delicadeza, do afeto, do calor. Pois não é que a beleza está em fazer-se mais e mais humano? Eu acho.

Mulheres também, claro. Na festa da lua cheia, dançávamos eufóricos e eis que, sem pedir, sem querer, me cabe assistir um barraco do começo ao fim. Diga-se de passagem, o som estava altíssimo, então a cena foi como um filme mudo, em que era preciso inventar os diálogos. A baixinha oxigenada chegou com uma amiga que, ao ver o cara lá, tentou logo afastá-la, mas a mulher já tinha visto o namorado com outra e instantaneamente começou a confrontá-lo. Inicialmente eu só percebia, e de costas, as posturas raivosas que o corpo da loura ia assumindo. Em relances, via as caras e bocas surpresas, constrangidas, do homem e de sua acompanhante. A festa corria solta, a turma dançava e pouquíssimas pessoas perceberam quando ela avançou e lançou o primeiro tapa na cara. O rapaz, bem mais alto que ela, apenas se encolheu, a mulher que estava com ele tentou moderar a situação, mas parece que elas conheciam, de modo que a saia justa ou a falta de reação fez a loura ganhar coragem e soltar o segundo tabefe. Uma amiga me viu perplexa:
- Não olha, não olha!
Como, assim? Não olhar? Como, se aquilo era a coisa mais interessante que estava acontecendo?
Vimos quando a baixinha se superou, o agarrou pelo pescoço e o agrediu com a outra mão. Ela era uma massa compacta de ódio. Só então algumas pessoas separaram o casal, e só então vimos de frente o rosto da  loura, completamente transtornado. Juro, era o lobisomem. Vai ver foi a lua cheia. 
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domingo, 20 de março de 2011

uma Clarice dadivosa?


Eu esperava no ponto. Veio um outro ônibus, parou e logo recomeçou o movimento.  Um pouco mais à frente uma moça corria desajeitada para pegá-lo. O motorista, um branco careca, atarracado e usando óculos, sorriu bonachão. Parou, esperou que ela entrasse. Logo que retomou seu curso, uma outra senhora com sacolas se arrastava como uma pata, mirando o coletivo com a esperança dos sem saída. O motorista mais uma vez sorriu, mais uma vez parou e levou mamãe ganso com suas compras.
Dizem que é proibido parar fora do ponto. Já eu, naquele instante, amei aquele homem. Juro, fiquei com vontade de dar para aquele motorista. Não por fome. Não por carência, nada disso. Mas por pura reciprocidade.
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sexta-feira, 18 de março de 2011

descaminhos

vejo o corrimão dourado colado na parede, olho os degraus de mármore que se desdobram à minha frente. vejo do alto? pessoas atrás de mim impacientes com minha dúvida. depois de alguns segundos de árduo processamento interno, finalmente me localizo. centro cultural do banco do brasil. é isso. acabo de ver a exposição do Escher, sigo pela escadaria dos fundos sem saber se subo ou desço. quem é que me garante agora que esses degraus descem? quem é que me garante que depois disso tudo eu chego em casa? quem é que me garante que eu sou aquela pessoa ...que entrou por ... por onde ...? deixa pra lá. mas quem é que hoje em dia garante alguma coisa, deus do céu?
agora só quero que meu caminho me encontre. 
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segunda-feira, 14 de março de 2011

noronha 2011

em Fernando de Noronha a gente ainda tem a sensação de contato com uma natureza selvagem. Nas águas cristalinas, milhões de peixinhos coloridos, solitários, em trios ou cardumes, peixes grandes, de quase meio metro, nadam entre nós e é como se não existíssemos. Tartarugas gigantes sobem à tona, descem, comem. São tão donas de tudo que é preciso cuidado para não tocar nelas sem querer – um amigo diz que viu algumas copulando. Ficou olhando...sabe lá quanto tempo elas demoram? Vi arraia dançando, nadando como borboleta, vi um tubarão pequeno em águas rasas e outro maior no mergulho profundo. E dezenas de golfinhos pulam, acompanhando o barco. parece filme, parece sonho.
em terra, umas aves estranhas, diferentes – lembrei de Darwin nas ilhas Galápagas – fazem ninhos em árvores altíssimas e lançam suas sobras nos humanos que querem sombra.  E tudo é grande, tudo é muito, a generosidade de formas, dimensões e cores me deixa exausta de tanto olhar. E não há compromissos de horário e o tempo passa devagar.
mas uma das coisas que mais me impressionou foi a população local. São muito simples, suaves, em maioria homens, de uma solidão sem fim. “Neuronha”, dizem. Grande novidade, diria vc, o mesmo que em qualquer cidade. Talvez. Mas lá é uma ilha, é quase um presídio – aliás, já foi. As opções – de contato humano, de conhecimento, de lazer - são muitíssimo mais reduzidas, bem menos frequentes. Os turistas chegam e vão embora, os nativos sempre permanecem. Então os contatos, efêmeros, têm um outro tempo, naturalmente acelerado: a intimidade é quase instantânea, as diferenças sociais ou culturais são zeradas e somos todos corpos mergulhados nessa natureza afrodisíaca. felicidade, volta à Mãe gaia.
cheguei pensando nessas barreiras que inventamos. Acho que seríamos mais felizes sem elas. Não me pergunte como seria viver um tempo longo sem elas.
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