quinta-feira, 24 de abril de 2008

separação litigiosa

Desço do ônibus diretamente no meio de uma briga acirrada entre um casal de mendigos:
- Tó, toma o teu anel.
Ela tira do dedo e o joga na cara dele. Sai correndo no meio da rua, entre os carros. Ao meu lado ele se abaixa, pega o anel, pensa um pouco. Logo depois, vai atrás dela, atravessa a rua como louco, batendo no capô dos carros, a pega pelos cabelos.
- Tu vai enfiar a cara na lama !
Mas ela desvia e se livra dele. Pega algumas roupas no chão, debaixo da marquise do banco, faz uma espécie de amarrado, que levanta acima da cabeça num safanão. Enquanto ele olha apalermado, ela vai embora sacudindo as roupas, gritando e rindo:
- Ó o que tu é, ó o que tu é !
Confesso que demorei até entender, mas o poder de síntese daquela mulher não deixava dúvida: o trouxa era ele.
Fez sentido. Afinal, ela perdeu um anel, mas ficou com todos os outros bens.
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terna idade

Olhando vitrines uma das amigas se entusiasma com as roupas:
- Olha, são muito baratinhas !
A outra lhe chama a atenção:
- Mas tão vagabundas ! É melhor comprar algo de mais qualidade, que dure mais. Um bom tecido dura uns vinte anos.
Ao que a primeira responde:
- Vinte anos ? Menina, toma jeito, é muito ! Você tá com 70 anos. Prá que é que você quer uma roupa que dure tanto, se você não vai durar até lá ?
A outra arregala os olhos, pensativa:
- É, mesmo...
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terça-feira, 8 de abril de 2008

assim

meu poema é vara, linha e anzol
isca que o abismo mordisca.
meu poema é rede, é laço
é puçá que caça o vento
armadilha de passarinho inventado
cão farejador de fantasmas
detector de ouro e metais.
meu poema fala de mares profundos
e regiões escuras, de submundos.
meu poema é poço e petróleo
é todo um sistema
dutos e bombas
homens e sombras.
meu poema não resolve
mas equaciona o problema
traz sempre à tona
esquecidas essências minerais
assim me alivia a guerra
me esvazia a terra
de dores e cólicas ancestrais.


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segunda-feira, 7 de abril de 2008

é tudo verdade

Essa aconteceu mesmo.
Há uns 10 anos atrás, já bem tarde, eu voltava de carro e resolvi abastecer no antigo posto Mengão, na Lagoa. Perto do sinal fui reduzindo prá evitar assalto e então ouço uma freada violenta de um carro na pista do outro lado. Logo vejo um homem correndo, perseguido por outros dois ou três. Pensei logo: olha o ladrão aí ! Eis que o tal ladrão atravessa pelo meio dos carros, dá de encontro com um automóvel que vinha mais rápido e simplesmente voa uns 4 metros acima do solo, caindo em pleno asfalto, no meio da rua. Está morto, pensei. É a primeira vez que vejo alguém morrer assim, na minha frente. Nesse instante as pessoas que o perseguiam entraram num carro perto do Estádio de Remo e arrancaram cantando pneus, seguindo em direção ao Rebouças.
Tentando entender o que acontecia, volto minha atenção para o morto e o carro que o tinha atropelado. Então o pseudo-morto se levanta e entra correndo no carro, no banco do carona, enquanto pela outra porta sai a motorista gritando e pedindo ajuda. Bem, eram umas onze e meia da noite, uma mulher sozinha estava sendo assaltada... podia ser comigo... nem sei bem o que ía fazer, mas fui solidária: dei uma ré, colocando-me atrás do carro dela. Pelo menos seríamos duas a gritar ! Nesse momento, mais que depressa, o pseudo-morto-ladrão saiu do carro à frente, abriu a porta do meu carona e entrou. Pânico !!! Eu já estava quase gritando quando vi que ele segurava um dos braços com a outra mão.
- Quebrei o braço, pelo amor de deus, me ajuda, eles tentaram me seqüestrar, me leva pro hospital.
Tudo rápido demais, eu tentando processar a transformação do réu em vítima, e então a atropeladora abre a porta do lado dele e começa a puxá-lo prá fora, gritando completamente ensandecida:
- Fui eu que atropelei, eu que tenho que levar pro hospital !
O raciocínio dela foi rápido. O meu, nem tanto, e era perplexa que eu via o ex-pseudo-morto-ladrão, agora quase-seqüestrado, dentro do meu carro, protegendo o braço quebrado e resistindo bravamente ao ataque da mulher que o queria de volta. Sei lá porquê, talvez pelo meu silêncio embasbacado em contraste com a gritaria dela, só sei que em poucos segundos ele pareceu confiar mais no “kinder Ôvo”. Bem, certamente o meu Ford Ka não teria, mesmo, zunido o cara tão alto... provavelmente, no impacto, meu adorado carrinho teria sido amassado como lata de cerveja... ui ! O fato é que o cabo de guerra entre o meu indesejado co-piloto e a pseudo-frágil atropeladora, cada vez mais desvairada, durou ainda alguns segundos, tempo que levei prá retomar a lucidez e assumir a coordenação do “bonde”: ele vai aqui, ela que fosse nos seguindo.
- Mas chegando lá eu é que tenho....
A louca gritava entrando no carro.
- Tá, no hospital você faz com ele o que quiser !
Ela achava que eu iria raptar a sua vítima ? de braço quebrado ? prá quê ?
Bem, ainda nervosa, com um olho no volante e outro ligado nos movimentos do estranho à minha direita, ouço a história: que tentaram seqüestrá-lo, o colocaram no porta-malas do carro, mas ao parar em um sinal, ele conseguiu forçar o capô e fugiu, e foi aí que... Se eu sabia onde ficava a Mitsubishi...
- Ali na Bartolomeu Mitre ? Sei.
Disse que era dono... Dono ?! Voltei a entrar em pânico. Meu deus, e se os seqüestradores voltaram e estão preparando um novo ataque e eu aqui no meio e se...
Chegamos ao Miguel Couto, graças a deus. E os berros da louca ainda no volante:
- Fui eu que atropelei !
Então ele pega o meu braço e me olha nos olhos. Achei que ía me beijar, me agradecer... Eu quase disse:
- Olha, não leva a mal, prefiro o meu "kinder Ôvo"...
Nada. Ele diz:
- Eu quero te pedir um grande favor.
Gelei. Não deu tempo nem de pensar.
- Vai até a revendedora e dá o seguinte recado prá D. Ângela...
(ou seria D. Sônia ? Isso o tempo levou ! )
- Mas e se ela não estiver mais lá ?
Eu torcendo prá gorar o favor, esquece, já é tarde !
- Aí você pede ao vigia prá dar o recado prá ela.
Ai ! E se os seqüestradores me pegarem e quiserem...
- Diz que o Davi está bem. Só isso. Não fala que eu estou aqui. Só diz que eu tô bem.
- Ah, você é o Davi.
- Faz esse favor ?
Apertava meu braço. Que jeito ? Ele desce do “kinder”, eu chego a acompanhar um pouco até ele entrar na emergência – e já chega a outra, que tinha ido estacionar o carro sei lá onde... Suspiro e me encho de coragem, que ainda tenho tarefa a cumprir nessa longa noite. Rondei cuidadosamente a loja, parei o carro um pouco mais longe – existem poucos como o "kinder", vai que os caras reconhecem ? Apavorada, espreitando a 360 graus, eu me aproximo. Lá está o tal vigia. A secretária já tinha ido, mesmo – meia noite e meia, não é mais hora ! Mas e o vigia ? E se ele não fosse, mesmo, o vigia, mas um dos seqüestradores, e se quisesse me usar para descobrir o paradeiro do Davi, e se... Pânico !!!
Bem, seja quem for esse vigia, o recado está dado. Ele bem ficou perguntando como é que eu sabia, onde estava o Davi, qual era o meu nome... Vai ver ficou pensando que eu era seqüestradora...
Nessa época eu dava aula, fui comentar com os alunos: não acreditaram, acharam que eu estava inventando ! Até riram, pode ? Pararam quando um deles confirmou. Parece que os pais eram amigos do tal Davi.

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domingo, 6 de abril de 2008

quantas lágrimas

caíram umas lágrimas minhas
no andar de baixo
ou no corredor
ou no pátio da garagem.
sei lá.
perdi de vista.
tantas eram
que perdi a conta.
como colar de contas
que de repente
arrebenta
explode aos borbotões
escorrendo
elas saem correndo
felizes
brincando
procurando um esconderijo
enquanto uma
conta até dez.
tantas lágrimas contei hoje
que em vez de lenço
passei o pano no chão.
Ai, lá vem o meu vizinho
reclamar de infiltração !


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quinta-feira, 3 de abril de 2008

maria do carmo

Separada há algum tempo, queria casar de novo. Vestia-se de vermelho e saía para a caçada. Quando via um “alvo” interessante, dava um jeito de se colocar na mira. Fatalmente ele a abordava, a voz melosa:
- Por que tanta pressa ?
Sorrindo, ela brincava:
- Ãhn...estou levando uns doces prá casa da vovozinha, lá do outro lado da floresta...
Depois de um passeio pela mata, geralmente ela se desencantava e partia prá outra. Ou se iludia, achando que, desta vez... logo se desiludia, dava um tempo, e partia prá outra.
Nunca mais soube dela. Maria do Carmo.
De repente veio a notícia, estourou como uma bomba: a menina que teria inspirado a história do Chapeuzinho Vermelho estaria viva, morando nas montanhas do Alasca. Um alvoroço, uma disputa entre as emissoras do mundo todo, repórteres, historiadores, antropólogos, tradutores.
Depois de uma longa escalada, a reduzida equipe chega às altas escarpas nevadas, onde é recebida na gruta da famosa menina, agora uma senhora dona de casa. Dona de gruta.
Batem palmas na porta. Atende um homem cabeludo, barbado.
- Chapeuzinho Vermelho ?
Ele ri, lembrando que algum dia a esposa teve, mesmo, esse apelido.
- O senhor é o marido ?
- Pois é, nem sei como é que isso aconteceu. Mas ela já volta, foi buscar lenha. Entrem, podem entrar, ela vai adorar conversar com vocês. Ah, olha ela aí !
Vem a mulher carregando um monte de galhos secos. Surpresa, sorri, cumprimenta todos e no mesmo instante ouve-se um choro de criança vindo do fundo. O marido pede licença:
- Ãhn, está na hora da mamadeira... 6 meses, a nossa filhinha. Meu bem, eles querem falar com você.
E vai atender a criança. A equipe de jornalistas espremidíssima na caverna de teto baixo, em silêncio absoluto, visivelmente constrangida, tenta se acomodar. O chefe cria coragem e pergunta com suavidade calculada:
- Senhora, sabemos que já faz muito tempo, mas existe uma expectativa...é, é uma curiosidade dos telespectadores... o que é que aconteceu com o lobo ?
- O lobo ? Quem ? Ah, o Lobo, Eduardo Lobo, meu marido. Dudu ! Eles querem falar é com você !
Lá de dentro:
- Já vou !
Cutucado pelos colegas, ainda mais envergonhado, o chefe volta à carga:
- Mas e aquele chapeuzinho ? O famoso chapeuzinho vermelho ? Para registro das nossas câmeras...
- Ih, lavou tanto que encolheu. Virou pegador de panela. Não é nem mais vermelho, já tá é meio marrom...
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quarta-feira, 2 de abril de 2008

geração de empregos

Parece que o político tinha uma amante. A mulher soube e contratou um matador prá acabar com a amante do marido. Então, ele contratou um guarda-costas prá defender sua amante do matador. Sabendo disso, a mulher pagou a uma garota de programa para distrair o guarda-costas e permitir a ação do matador. Dizem que, ao se inteirar, o marido arranjou um ator que, vestido de turista, fará uma boa oferta à garota para darem umas voltas.
Quero saber até onde vai essa "cadeia produtiva". A
guardo ansiosa abrirem vaga para escritores.

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tempo de sinhá

Estamos em Araruna, no ano de 1885, e agora eu trabalho em uma loja de doces. No calor desta manhã tediosa, daqui do balcão posso ver a mulher branca que sai da igreja, atravessa a rua de paralelepípedos em direção à praça da cidade. A longa saia rodada, cheia de rendas, cobre uma falsa “derriére”, anáguas, meias, botinhas de camurça. Na unidade superior, a mantilha nos ombros complementa um casaquinho da mesma cor da saia. Embaixo do casaquinho uma blusa de rendas esconde o espartilho que aperta as costelas, fechando os pulmões em uma respiração afogueada. A branca é seguida de perto por sua escrava, que lhe segura a sombrinha, protegendo-a do inclemente sol dos trópicos. A negra de turbante veste apenas panos rústicos enrolados e amarrados no corpo.
O tempo passa devagar. Para o elenco de apoio da novela, um tempo de areia que infinitamente se esvai, quente e lento, sem retorno. Dias inteiros e nada a fazer, a não ser observar a movimentação na cidade cenográfica.
De repente toca meu celular, atendo e é alguém que se exalta porque não sabe apagar uma linha de tabela no computador. Exige, vocifera. Estamos no Rio, ano 2006. Meus pulmões rapidamente se fecham e é com respiração afogueada que grito:
- Tempo !
Escrava branca ? Ouço a linha, sinto a vida desalinhada. Não tenho tempo, mas que tempo é este ? Não entendo como é possível um ser humano achar que pode ser dono e senhor de um outro igual.
Não, não sou escrava. Desligo.
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terça-feira, 1 de abril de 2008

sabedoria

Como quem acaricia a cabeça da avó
Da minha janela privilegiada
Toco as folhas mais altas
De uma senhora mangueira.
Amigas há pouco tempo
Comadres recentes
Acompanhei duas gerações
Desde que somos vizinhas
Dois verões.
Depois das flores
Adoro as manguinhas-neném
Minha janela vira creche de azeitonas
Que posso pegar com a mão.
Adolescentes
Mais evasivas, distantes
Adultas
O peso aproxima do chão
Mangas urbanas
Suculentas
Saciam vizinhos e meninos de rua.
Hoje acordei observando
Nem flores nem frutos
Silêncio
Tronco e cabeleira de folhas.
Feliz
Ela relembra mangas roubadas no pé
Vida tão desejada
Serena
Cicatriza mangas no chão apodrecidas
Vida perdida.
Inquestionável natureza.
Inarredável na sua certeza
Poderosa
Guarda forças
Aguarda o verão.
Ah, como eu queria ser mangueira !


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