quinta-feira, 26 de maio de 2011

receita descongestionante

volta e meia tenho sinusite. Há algum tempo descobri, não a cura, mas um ótimo descongestionante nasal. Baratíssimo, quase de graça, mas a pessoa precisa dispor de tempo. E coragem. É assim:
- antes de tudo: este processo de cura só pode ser aplicado quando você estiver sozinho em casa. Ou trancado no quarto, sem ninguém pra incomodar.
- prepare o lugarzinho onde você vai deitar.
- pegue uma caixa de lenços de papel – pode ser um rolo de papel higiênico, faz o mesmo efeito (e, já que não tem ninguém vendo, é mais barato!).
- selecione aquelas músicas que mais te emocionam, que te levam às lágrimas. É uma escolha individual, claro (aquelas que você ouve quando tá na fossa, por exemplo). Em todo caso, sugestões: “Ne me quite pas” (a ideia do abandono costuma funcionar...), CDs do “Antony and the Johnsons” (de uma delicadeza pungente muito boa para a proposta ). “Canção desnaturada”, da Ópera do Malandro, também é uma boa.
- desligue telefones, celulares, interfones. Feche cortinas e persianas. No escuro é mais fácil.
- deite-se e ponha as músicas pra tocar.
A ideia é deixar o choro vir, mesmo. Quanto mais, melhor. Se precisar, grite e faça as caretas necessárias sem se criticar. Isso é o mais difícil. Logo você vai sentir o fluxo descendo. Não pare nem saia do lugar, simplesmente pegue o papel e assoe o nariz.
Não desista, não tenha pressa. Ouça todas as músicas que você selecionou – às vezes uma não funciona, mas a outra, sim.
O tempo de aplicação depende de cada um. Eu costumo levar uma meia hora, 40 minutos. Choro até, choro de me acabar. Depois, entro no chuveiro. Quando saio, sou outra pessoa: sou um ser descongestionado.
Não vou negar que é um remédio doloroso. Se a gente se permitisse chorar mais vezes, talvez não chegássemos a ponto de congestionar. Talvez chorar devesse ser como ir ao banheiro - já deu sua choradinha hoje? Mas não. Neste nosso mundinho, além de trabalhar duro, cada vez mais, ainda precisamos ser felizes o tempo todo. Esta “sociedade do riso” não tem espaço para a tristeza. Em compensação, temos uma farmácia em cada esquina.
Então ficamos assim. Você também pode tomar Neusaldina. Mas aí perde a chance de encontrar seus fantasmas. E, quem sabe, conhecê-los um pouquito mais.
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terça-feira, 24 de maio de 2011

festa literária de Santa Teresa

Participamos da FLIST nos dias  14 e 15 de maio, no Parque das Ruínas, com a exposição “PENAS e PANOS” - mostramos trabalhos criados por alunos da E.M. Júlia Lopes na Oficina “Encontros de Leitura”, ministrada por mim e pelo Fabiano Fernandes dentro do Projeto 2º. Turno Cultural, da Prefeitura do Rio. A leitura do livro “Papo de pato” proporcionou um voo unindo palavras e objetos: a poética de Bartolomeu Campos de Queirós, autor homenageado na FLIST, e a investigação materializada pelas crianças. 




 

sexta-feira, 20 de maio de 2011

sobre cannes e von triers...


A rede social facebook, da qual participo, entrou na discussão sobre as declarações de Lars Von Triers. Interessantíssima, aliás, porque nos coloca frente a questões complexas e dilemas não totalmente resolvidos. Defendemos a liberdade de expressão doa a quem doer? O artista tem direito a falar o que lhe der na telha? Mas ele não é um cidadão como qualquer outro? Mas e se o que ele fez foi apenas uma piada infeliz? Sim, mas e daí? Deve ser expulso de Cannes? Mas e sua obra, não? Artista e obra são separáveis ou não?
Desafiante, nada trivial. Deu vontade de pensar um pouco.
Antes de mais nada, devo dizer que ADORO a obra dele. Mesmo. Acho instigante, inteligente, move com regiões abissais do ser humano e sempre me faz pensar.
Mas nesse momento, lembrei de um ditado antigo: “quem fala o que quer, ouve o que não quer”. Embora eu seja contra a censura, principalmente quando se trata de obras de arte, as declarações do cineasta não faziam parte de sua criação artística. Ele falava como cidadão. E, como cidadão, artista, deputado, médico, desempregado, policial ou gari, é tudo igual – ou devia ser, né? É isso que se propõe em uma democracia...
Aí, mesmo que a gente defenda a liberdade de expressão, também há limites – e eu concordo que tem que haver - para as loucuras que saem pela boca de uma pessoa. Porque elas atingem outra. Tem a famosa frase: “A liberdade de um termina onde começa o direito de outro”. Então, se a pessoa não sabe ou não consegue se controlar, não tem esses freios internos, não tem a delicadeza de perceber que está ferindo outras pessoas – e, infelizmente, muitos artistas têm enorme dificuldade para ver o outro – a sociedade vai ter que dar um jeito de colocar esses limites. Porque todo ato tem suas consequências, a gente também não pode ser ingênua de sair xingando os outros e achar que ninguém vai se importar (até porque, na maioria das vezes, a pessoa quer mais é que os outros se importem, de um jeito ou de outro!). Se formos pensar bem, a total liberdade de expressão na verdade não existe na vida em sociedade, porque o sujeito que sair falando o que lhe der na veneta algum dia poderá ser processado por calúnia, difamação, etc. (Isso se antes não levar um tapa, um soco, um tiro...)
Alguém pode dizer: “Ora, mas ele não xingou ninguém, apenas fez uma piada de maugosto dizendo-se simpático a Hitler!”. Então acho que também seria ingenuidade vermos as coisas assim. Primeiro, se pensarmos nessa forma de humor: se foi uma piada, foi em forma de ironia, de deboche, que é algo muito diferente de tornar as pessoas mais alegres, com intenção de confraternizar e fazer outras pessoas rirem junto conosco sem fazer mal algum, sem reduzir ninguém. A ironia, o deboche, é um modo disfarçado de ferir, de espicaçar o outro. Mesmo inconsciente, houve uma intenção nada agradável. Depois, quando se fala em simpatia por ninguém menos que Hitler – Hitler! -  não dá pra esquecer que o cara foi responsável por um dos períodos de maior barbárie da nossa história, pela morte de milhões de pessoas e que isso causou feridas até hoje muito fundas e vivas. Tanto é que até hoje é tema de livros, filmes, peças, etc. Então podemos entender que esse deboche é dirigido às pessoas que mais sofreram com o holocausto, e podemos entender que essas pessoas recebam as declarações de Von Triers como um xingamento. Porque é quase como se ele dissesse que não só não se importa com o sofrimento delas, como considera que foi correto todo o sofrimento que lhes foi imposto.
Aí, haverá consequências, certamente. Não que eu as defenda. Estou apenas tentando entender e refletir sobre tudo isso. Porque, teoricamente, talvez fosse bom se a pessoa um dia pudesse falar uma insanidade dessas e ninguém se importasse (insanidade, considero essa declaração como um lapso de demência, mesmo). Porque de tão bárbara, todos teriam certeza de que é loucura e, portanto, teriam como reação apenas um muxoxo e dariam de ombros. Não valeria a pena sequer gastar energia com isso. A não reação também seria sinal claro para todos de que já não nos importamos, porque já mal lembramos quem é Hitler, porque há muito que as feridas já teriam cicatrizado. Um dia.
Por outro lado, seria também um péssimo sinal chegarmos um dia à situação em que as palavras de um dos nossos maiores cineastas não têm nenhuma importância. Ou seria sinal de que as palavras, em geral, não mais afetam as pessoas. Que as pessoas definitivamente não se importam umas com as outras, que as pessoas estão definitivamente surdas umas às outras.
Não, ainda não estamos lá - ou nunca estaremos. Sei lá.
Em todo caso, gosto sempre de pensar que a arte vale mais do que o artista. E como arte e artista não são a mesma coisa, isso quer dizer que, separáveis ou não, de modo geral a melhor parte do artista são as suas obras. Daí que posso não concordar com o fato de Cannes ter expulsado Von Triers, mas aplaudo a manutenção de sua “Melancolia” no festival. Estou louca pra ver.
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terça-feira, 17 de maio de 2011

penas & panos

Foi o nome da nossa mostra na festa Literária de Santa Teresa, que aconteceu npos dias 14 e 15 de maio. Eram trabalhos de alunos da escola Júlia Lopes, criados na Oficina que ministro junto com o Fabiano Fernandes.
A leitura do livro “PAPO DE PATO” proporcionou um voo unindo palavras e objetos: a poética de Bartolomeu Campos de Queirós e a investigação materializada pelas crianças.

palavras:

Na história há dois patos: um tem penas e o outro, não. O pato pelado pede algumas penas ao outro, que arranca metade das que tem e lhe dá. Então os dois ficam iguais: metade pelados e metade penados.
Jogando com a sonoridade e os significados da palavra “pena”, o autor tece um lindo texto sobre a diferença, o reconhecimento da falta e a possibilidade de pedir, a capacidade de ver o outro e poder doar.

objetos:

A proposta aos alunos foi a criação de 3 tipos de patos: penados, pelados ou “meio a meio”. Eles ficaram encantados quando levamos os materiais: penas, retalhos, isopor, cartolina.
O mais difícil não foi colar as peninhas em bolas de isopor.
O complicado é que eles só queriam fazer patos penados!
Compreensível. Saudável. Ninguém quer fazer um pato pelado. Porque é como ser pelado. É como não ter. É ter que lidar com a falta. Difícil, mesmo.
Conversa dali, a história de lá, e aos poucos se descobriu a beleza de texturas e tecidos. A combinação de cores. A riqueza, a possibilidade de harmonizar diferenças. A necessidade de aceitar, em si e nos outros, faltas e falhas.  
Os alunos se divertiram e riram muito percebendo-se em situação paralela à da história, pois era preciso compartilhar tudo com os colegas (tecidos, tesoura, cola e, literalmente, penas!!!) 
No final, as palavras mais marcantes foram parar debaixo das asas.
Palavras lindas, que nos ajudam a acreditar nesse voo.

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quarta-feira, 11 de maio de 2011

as loucas de maio

Cheguei mais cedo numa escola onde dou uma oficina. As professoras tinham reunido umas 80 crianças no pátio para fazer uma homenagem às poucas mães que compareceram – era plena 2ª.feira à tarde, a maioria trabalha.

Primeiro foi a turma das menorzinhas, umas 10 crianças de 6 anos cantando “a capella”, timidíssimas, coitadas, quase um paredão de fuzilamento na frente de professoras, funcionários, enfim, diante de toda a escola. Então sorri, solidária. Depois da primeira vergonha, elas se soltaram um pouco mais e pudemos ouvir a delicadeza daquelas vozes, tão lindas quanto frágeis, tão tocantes justamente por sua inocência e hesitação.

A música seguinte foi cantada por todos os alunos juntos. Foi uma onda, foi inevitável: eu me  percebi ali, naquela escola pública semiabandonada, caindo aos pedaços, à beira da favela, entre crianças pobres, às vezes subnutridas, algumas de chinelos, camisas rasgadas, sujas, cantando para poucas mães, igualmente pobres e abandonadas. As poucos elas elevavam a voz, as crianças agora cantavam a plenos pulmões e embora meu senso crítico reclamasse da música cafona, a garra das professoras regendo aquele coro dos desvalidos criava uma imagem inusitada que fundia força e insanidade: essas mulheres loucas, carismáticas, que ganham pouquíssimo, me apareceram comparáveis às mães da praça de maio. São elas agora as nossas loucas da resistência, visionárias e revolucionárias; elas são hoje o reduto da mais profunda e verdadeira resistência, pois constroem sua própria existência a partir de valores completamente contrários aos da ordem capitalista vigente. Elas não têm lucro, elas não pensam no lucro, elas não pensam em competição, não sabem de marketing, não sabem do mercado, da bolsa, do euro, das ações. As loucas vivem e trabalham em condições miseráveis e  insistem em ensinar as crianças a cantar e a demonstrar afeto.  
Então foi assim que eu me peguei chorando.    
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quarta-feira, 4 de maio de 2011

vida ou arte ?

Ensaiava em casa uma cena com uma colega. Então ouvimos a mulher aos gritos:
- Mentiroso, você é um canalha! Mentira!
Moro no térreo, com uma pequena diferença de altura que faz da minha janela um camarote para a rua. Dali, meio escondidas pela cortina, assistimos a cena, muito melhor do que a nossa: a mulher brigava em altos brados com o namorado, amante ou algo assim, exatamente na frente do meu prédio. Encostado na mureta, o culpado não falava nada, só resistia aos impropérios, safanões e tabefes que ela prodigalizava.  
- Escroto, você foi um covarde. Você não teve nem coragem de...e você não fala nada, fica aí...
E soltava um tapão. Ele sentia a investida, o corpo oscilava um pouco, como um lutador de boxe, mas como joão-bobo voltava logo ao eixo, para em seguida repetir o balanço com o novo ataque:
- Freguesa...que freguesa, o quê! Levou ela aonde? Eu não sou palhaça!
E voou outra bofetada. Só então percebemos o táxi parado logo acima. Olhamos uma para a outra, entendendo. Aquilo era de verdade. Não era teatro, os dois estavam muito transtornados, vivendo intensamente tudo aquilo. Era o aqui e agora. Nossa curiosidade, enorme; o medo de sermos vistas, completamente egoísta: já não estávamos preocupadas com o constrangimento deles, mas por nada no mundo queríamos interferir e correr o risco de perder o desenrolar da cena.
- Podre. Podre, mesmo. Foi fazer programa com granfina. Um merda!
E bateu tanto que ele se afastou um pouco. Ainda batendo, ela foi atrás, de modo que a cena se deslocou um metro ladeira abaixo e a plateia, escondida, teve que deslizar rapidamente alguns móveis para acomodar a visão.
- Podre, mesmo. Michê! Você virou michê de bacana.
Aí ela inovou: cuspiu nele. Então houve uma pausa. Um silêncio. Os dois sentiram que tinham chegado a um novo patamar.
Depois de um tempo, ele limpou o rosto. Então, em outro tom de voz, ela falou:
- Olha o que você fez com a gente... com a nossa história tão bonita. Você estragou tudo.
Em seguida ela virou as costas e foi andando. Logo depois ele entrou no táxi, partiu.
Ficamos estarrecidas. Ela gosta dele. Muito. Eles vão voltar. Ele foi atrás dela. Mas aquela rua não dá mão. Ele faz a volta. Deve ser verdade. Ele não abriu a boca. E cada tapa! Ela tá uma fera. Ela falando da história tão bonita. Como será que...? Achei que ela tava chorando. Por isso foi embora. Pra não chorar na frente dele. Não mostrar que ainda gostava.
E tudo na minha frente, na minha janela. Foi a melhor parte do ensaio.
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