quarta-feira, 31 de março de 2010

do pó ao pó

Procuro um nome para minha empresa. Remexo em livros, reviro camadas de minha arqueologia, lá está: Irazú. Árida superfície lunar de enorme cratera, vegetação rarefeita, desconhecida, silêncio absoluto. Vejo a foto: ilusão de paz. Um sentido oculto vibra, assustador, imponente, ameaçador. É lá da Costa Rica que vim; de vulcões e terremotos, sísmica, sismada nasci.
Das cinzas da minha infância, o que longe me lembro: quando tinha uns 4 ou 5 anos, o Irazú lançava montanhas de poeira sobre San José. Os garis varriam diariamente a cidade, acumulando miniaturas do vulcão nas esquinas. Os telhados das casas, como tudo o mais, cheios de cinzas, e no fim do dia, as pessoas voltavam para casa com o rosto e as roupas totalmente cinzentas.
Depois, voltei só uma vez, adulta. Visitei a montanha, o vulcão quieto, conversei com a cratera.
Frente ao perigo, é como se ouvisse o som surdo dos tambores - atenção - e a voz ancestral que convive e aceita a violenta erupção: “Podemos prever, podemos avisar. Nunca poderemos evitar”.
Por isso, agora que o caos se aproxima, procuro em mim força e suavidade, procuro em mim a milenar sabedoria de quem ouviu os estrondos, de quem conhece os tremores, de quem é feito de fogo, de quem viveu sob as cinzas.
Quando eu morrer, quero apenas voltar às cinzas. Se possível, me devolvam, me lancem dentro da cratera do Irazú.

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domingo, 28 de março de 2010

cena da peça "Viemos todos do inferno" (título provisório)

Sala da casa. Maria Teresa, de biquini, assiste TV deitada no sofá.
CARLOS (entra vindo da rua) Ufa, que calor!
TERESA Ahn-hã.
Maria Teresa se cobre instintivamente com uma almofada. Depois desiste e a tira de cima.
CARLOS (vai até a cozinha, pega um copo dágua) Nooossa, nós andamos quilômetros.
TERESA Que saco, hein?
CARLOS A mamãe é louca.
TERESA Que novidade.

CARLOS E não adiantou nada.
TERESA Sei.
CARLOS Sabe o quê? Por acaso já foi alguma vez num cartório? Já foi despejada de algum lugar?
TERESA Despejada ou não, eu nunca tive mesmo um lugar...
CARLOS Ai, coitadinha.
Carlos dá a volta no sofá e só então a vê realmente.
CARLOS Tá pelada?
TERESA Não, imbecil. Tô de biquini.
CARLOS Dando show aí pra vizinhança, é?
TERESA Ah, é. A gente podia pelo menos cobrar...(levanta-se rebolando, aproxima-se das janelas)
CARLOS (rindo) É, ia fazer o maior sucesso.
TERESA Você acha?
CARLOS (vai atrás dela) Eu ia virar o teu cafetão. Vem cá.
TERESA (desvia) E quem disse que eu ia precisar?
CARLOS (prensando-a contra a parede) Acho que você ia querer.
TERESA (safando-se) Acho que você tá muito convencido...
CARLOS (a puxa pelos cabelos) Deixa de ser exibida...
Os dois caem no sofá, embolados. Quase se beijam, mas são interrompidos pela entrada de Madalena num rompante.
MADALENA Que loucura! Uma fornalha! A gente tá vivendo no inferno, só pode ser...

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quarta-feira, 17 de março de 2010

o apê do Cacau

então ele pegou a planta, abriu-a lentamente sobre a mesa e falou:
- Nós vamos ter de fazer algumas modificações, claro...
A coisa de 2 metros de distância, sentada sobre os caixotes da mudança com seus 95 quilos dentro de um tailheur lilás, Madalena apenas olhou de viés, acariciou o colar de pérolas e resolveu:
- Eu não vou morar numa kitinete, mas nem morta!
O Carlinhos sabia que não ia ser fácil:
- Tô tentando ajudar, não sabe como foi duro convencer o Cacau.
Faz sinal pedindo ajuda à irmã. Teresa respira fundo, aproxima-se da mesa como quem sobe o cadafalso e, seguindo o dedo do Carlinhos entre quadrados e retângulos, diz com falso entusiasmo:
- Mas é um quarto e sala, mãe, vê só!
- Nnnnão... Isso aí já é outra coisa, diz Carlinhos sem graça, abaixando o tom.
- Como? Tá aqui, ó. Não é uma sala, aqui?
- É. Do vizinho.
- Ah. Ué, a parede...
- Um pessoal muuuito legal, esticou o Carlinhos, espiando a mãe com o rabo de olho.
- Mas mora junto?
- Uma turma animada que só vendo. A mãe vai gostar.
A mãe resmunga:
- Quero ver me tirar dqui.
Teresa observa o papel estendido.
- Tem um rio? Isso aqui é um riachinho?
- É a rua, mesmo.
- Curva, assim?
- É ladeira.
- Ih... é o comentário que vem dos caixotes.
Mas Teresa é curiosa:
- A que sobre pra igrejinha?
- Não, pro outro lado.
- Ué. Mas do outro lado é morro.
A paciência do Carlinhos chegou no limite:
- Escuta aqui, alguém tem ideia melhor? Qualquer hora chega aqui o oficial de justiça, eu consegui a duras penas que o Cacau falasse com a tia dele, a mulher liberou pra gente ficar lá por um tempo, que o espaço é usado pra...
- Pra quê?
- Ah, não interessa. Agora vocês vão ficar de frescura só porque tem que caminhar mais um pouquinho?
- Carlinhos, esse apartamento... Teresa finalmente entende os muitos sinais de Carlinhos e, estarrecida, deixa a frase pela metade. Faz-se então um longo silêncio ensurdecedor. Carlinhos estava a ponto de desistir, já ia guardando a planta quando ouve um som vindo dos caixotes.
Eis que, secando o suor com um lencinho de cambraia, Madalena finalmente diz:
- Eu vou levantar...
Solícito, Carlinhos corre para ajudá-la:
- Vai aonde, mãe?
- Vou levantar o preço do colete a prova de balas.
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