terça-feira, 19 de janeiro de 2010

pera, uva, maçã...

Era logo cedo que a solteirona intacta, invicta, entrava no hortifruti. Passeava por entre as gôndolas de frutas e legumes, demorava bem uns quarenta minutos, uma hora, e saía levando, no máximo, um ou dois produtos. Às vezes, mesmo depois de todo aquele tempo, saía de mãos abanando. Mas no dia seguinte, mal as portas da loja se abriam, lá estava ela. Intrigado, o segurança conversou com as moças do caixa. É, todas reparavam, mas qual era o problema? "Deve ser pesquisa de preço". "Tem velhinha que vai a 3 supermercados por dia para aproveitar as diferentes ofertas de cada um. Acontece de pesquisar em todos a carne, por exemplo, e depois voltar ao primeiro para fazer a compra. Ou achar caro e não comprar em nenhum".
O guarda não ficou lá muito convencido. Alguma coisa na cara dela o fazia suspeitar de estranhas intenções.
Depois de umas semanas de presença quase diária – com chuva, não – ele pediu o apoio de um colega na entrada e seguiu discretamente a mulher em seu passeio pela loja. Foi logo surpreendido pela reação dela ao ver que já havia morangos. Ela abriu um largo sorriso e quase gritou de felicidade: “Mas já?” Correu para eles, pegou um punhado e cheirou, cheirou, aproximou-os do rosto, quase se lambuzou com eles. Mas então os devolveu, suspirou e ficou de levinho, acariciando. Em seguida avançou para as ameixas. Pegou uma, fazendo-lhe o contorno, passando-a lentamente de uma mão para a outra, com uma sensualidade que perturbou o segurança. As tangerinas ela fazia passear em torno da boca. E cheirava, a respiração ampla, as narinas abertas como animal, como uma égua. Os limões discretamente rolava pelo pescoço, massageando-se, deleitando-se, sempre cheirando. Quando ela achava que ninguém estava olhando, eram os pêssegos que rolava em torno dos seios. Só ele, o vigia, é que via. E boquiaberto, suava. E ansioso acompanhou a excursão por entre mangas e maçãs, uvas e melancias. E extasiado, hipnotizado, assistiu-a atacando os legumes. Das batatas às berinjelas e beterrabas, dos tomates aos pimentões, tudo ela cheirava, apalpava, deslizando pelo corpo, ombros, braços, cotovelos, pela barriga. Mas quando foi em direção aos pepinos e cenouras, quando ele a viu fechar os olhos e jogar a cabeça para trás, percebeu que estava perdido. E no instante em que os lábios se abriram e seu sutil sorriso lateral se transformou em mudo gemido de prazer, ele gemeu por ela. Ou com ela.
Imediatamente desperta, a mulher correu, sumiu, desapareceu.
Ele enlouqueceu. Procurou em vão seus dados, foi pego remexendo nos arquivos da administração. Tentou explicar, pediu demissão, mas ficou um tempo rondando pela área.
Agora parece que foram vistos, juntos, de mãos dadas, fazendo a feira.
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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

teste

agora fui judia sobrevivente de Auschwitz, perdi 3 filhos e um marido e por 15 minutos mergulhei na dor e revolvi história e memória dessa mulher, sentada exausta nos anos 70 no banco de uma praça em Paris.
êta vida louca... isso de ser atriz é vertente-vertigem, olha aí, a pessoa que se dilacera e quase chora logo sai, toda contente porque sofreu direitinho, e num instante já embarca no calor 40 graus desse Rio caótico e some na multidão.
entrar na pele dos outros e brincar de sofrer é muito doido, mas dá alegria quando a gente sai sobrevivente do outro lado. isso é sempre bom, de verdade ou não.
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

singela

Às vezes olho pra cima e vejo admirada esses verdadeiros excessos da presença divina: palmeiras altíssimas - sabe deus o que elas conversam com as nuvens! -, mangueiras frondosas, de troncos tão grossos que dariam 5 ou 6 de mim, jaqueiras enormes, carregadas de frutos.
Sei que sou baixinha. Talvez por isso, ou por ser lisinha, gostosa de tocar e acariciar – eu não tenho espinhos e não arranho ninguém, como tantas outras por aí - a garotada brinque tanto comigo. Eles sobem nos meus galhos, e eu deixo; penduram cordas e pneus que eu ajudo a balançar; comem meus frutos ou levam pra fazer doce. Às vezes sinto até o cheiro da panela em que uma parte de mim é transformada para integrar o mundo dos homens. Se tivesse voz, nesse momento juro que eu cantava. Que delícia, meu próprio cheiro, que prazer, suscitar o desejo e ser devorada com deleite! E à noite eu sonho, feliz, imaginando a alegria de homens, mulheres, crianças me repartindo, compartilhando a mais popular, a soberana sobremesa.
Às vezes tiro a sorte grande e me escolhem pra fazer piquenique. Minha sombra não é lá grandes coisas, confesso, mas eu me esforço juntando um pouco as folhas. É uma festa! Noutras vezes, são namorados que vêm se recostar, aos beijos, abraços e tudo o mais. Acolho, claro, discreta e com o maior prazer. Só é duro quando abusam da hospedagem e desenham em mim a canivete. Na hora, dá vontade de gritar: e depois, quando o amor passar? Depois vão embora e me deixam assim, ferida! Dá vontade de xingar!
Aí fico triste e olho prá baixo: a terra, as folhas caídas, os frutos perdidos... vá lá, foi por amor, tudo por amor... E se não gosto da cicatriz, ela ao menos me diz que o amor entre os homens algum dia existiu.
Quando às vezes olho pra cima e vejo as altas árvores, tão distantes, sorrio e agradeço a deus por ter me feito goiabeira. Acho que é uma grande vantagem isso de ser assim, pequena: é que acompanho os seres humanos bem de perto. Eles são do meu tamanho.
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