domingo, 12 de junho de 2011

copabacana

Morei em Copacabana com uns 8 anos de idade. Tínhamos chegado ao Rio, vindos do Peru, onde morávamos em uma casa ampla com vários quartos, jardim, árvores. Aqui, ficamos inicialmente 9 pessoas em um apartamento minúsculo (pai, mãe, 6 irmãos, com idades entre 1 e 11 anos, e uma babá). Era um inferno. Mas como tudo sempre pode piorar, chegou o verão. Não sabíamos o que era morar confinados em um apartamento, e desconhecíamos que era possível um calor como o daqui. Essa é a lembrança de infância.
Hoje, Copacabana é, pra mim, um dos bairros que melhor retrata o caos e as maravilhas da grande metrópole que é o Rio de Janeiro: ruas intransitáveis, ônibus superlotados, formigueiro de gente nas calçadas, barulho. E lojas, restaurantes, cursos, serviços,  atrações. E gente de todas as partes do mundo, de todos os níveis econômicos, falando mil línguas, reunida em múltiplas atividades. Um caldeirão multicultural. E ao mesmo tempo, a natureza aberta, manifesta em sua exuberância, garantindo seu espaço livre dos paredões.
Hoje em dia frequento pouco. Mas quando vou, acho bem bom me misturar a esse mar de gente. Uma sensação de estar no mundo, sem fronteiras. Ali, como diria Maurineide: “Ali tem de um, tudo. Êta, mundão sem porteira!” 
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domingo, 5 de junho de 2011

só pensando...


Então, daquela interessante discussão sobre a infeliz declaração do Lars Von Triers, já extrapolando, fiquei pensando sobre o quê, daquilo que fazemos ou falamos, é preciso conter, tentando ser delicado e não ferir os outros, e aquilo que, sim, exige coragem e precisa ser expresso, e, nesse caso, é o outro quem tem que ouvir, tem que saber aguentar. E conter, por sua vez, sua vontade de reagir. Difícil, né? Se já é complicado nas ações e relações cotidianas, mais ainda quando a gente entra no terreno das artes...
Sou artista, a favor da total liberdade artística, mas isso não me impede de pensar nos dilemas que isso pode criar, porque o próprio conceito de arte é cultural (tô sendo redundante? Não, acho que não) e dinâmico. Quero dizer é que, neste mundinho globalizado e ao mesmo tempo fragmentado por muitas culturas, o que eu considero arte – e, portanto, campo de liberdade plena – pode não ser considerado como arte por algum fanático, seja de que tipo for. Aí ele pode se sentir no direito de “não ter que aguentar”...E aí, sei lá. 
(quero pensar/escrever mais sobre isso, continuo depois...)
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quinta-feira, 2 de junho de 2011

líquidos


Nuvens não são esferas
Montanhas não são cones
Litorais não são círculos
A casca não é lisa e
Nem o relâmpago viaja em linha reta.
Benoit Mandelbrot


Há um mundo que desmorona. Não são só os países árabes. Nem só a Península Ibérica. Ou mesmo a União Europeia. O Japão, nem se fala. Tudo o que algum dia foi sólido, hoje se liquefaz. Se tiver alguma boia ou colete salvavidas, pegue. Assuma a direção do seu barquinho, a viagem será longa. 
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quinta-feira, 26 de maio de 2011

receita descongestionante

volta e meia tenho sinusite. Há algum tempo descobri, não a cura, mas um ótimo descongestionante nasal. Baratíssimo, quase de graça, mas a pessoa precisa dispor de tempo. E coragem. É assim:
- antes de tudo: este processo de cura só pode ser aplicado quando você estiver sozinho em casa. Ou trancado no quarto, sem ninguém pra incomodar.
- prepare o lugarzinho onde você vai deitar.
- pegue uma caixa de lenços de papel – pode ser um rolo de papel higiênico, faz o mesmo efeito (e, já que não tem ninguém vendo, é mais barato!).
- selecione aquelas músicas que mais te emocionam, que te levam às lágrimas. É uma escolha individual, claro (aquelas que você ouve quando tá na fossa, por exemplo). Em todo caso, sugestões: “Ne me quite pas” (a ideia do abandono costuma funcionar...), CDs do “Antony and the Johnsons” (de uma delicadeza pungente muito boa para a proposta ). “Canção desnaturada”, da Ópera do Malandro, também é uma boa.
- desligue telefones, celulares, interfones. Feche cortinas e persianas. No escuro é mais fácil.
- deite-se e ponha as músicas pra tocar.
A ideia é deixar o choro vir, mesmo. Quanto mais, melhor. Se precisar, grite e faça as caretas necessárias sem se criticar. Isso é o mais difícil. Logo você vai sentir o fluxo descendo. Não pare nem saia do lugar, simplesmente pegue o papel e assoe o nariz.
Não desista, não tenha pressa. Ouça todas as músicas que você selecionou – às vezes uma não funciona, mas a outra, sim.
O tempo de aplicação depende de cada um. Eu costumo levar uma meia hora, 40 minutos. Choro até, choro de me acabar. Depois, entro no chuveiro. Quando saio, sou outra pessoa: sou um ser descongestionado.
Não vou negar que é um remédio doloroso. Se a gente se permitisse chorar mais vezes, talvez não chegássemos a ponto de congestionar. Talvez chorar devesse ser como ir ao banheiro - já deu sua choradinha hoje? Mas não. Neste nosso mundinho, além de trabalhar duro, cada vez mais, ainda precisamos ser felizes o tempo todo. Esta “sociedade do riso” não tem espaço para a tristeza. Em compensação, temos uma farmácia em cada esquina.
Então ficamos assim. Você também pode tomar Neusaldina. Mas aí perde a chance de encontrar seus fantasmas. E, quem sabe, conhecê-los um pouquito mais.
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terça-feira, 24 de maio de 2011

festa literária de Santa Teresa

Participamos da FLIST nos dias  14 e 15 de maio, no Parque das Ruínas, com a exposição “PENAS e PANOS” - mostramos trabalhos criados por alunos da E.M. Júlia Lopes na Oficina “Encontros de Leitura”, ministrada por mim e pelo Fabiano Fernandes dentro do Projeto 2º. Turno Cultural, da Prefeitura do Rio. A leitura do livro “Papo de pato” proporcionou um voo unindo palavras e objetos: a poética de Bartolomeu Campos de Queirós, autor homenageado na FLIST, e a investigação materializada pelas crianças. 




 

sexta-feira, 20 de maio de 2011

sobre cannes e von triers...


A rede social facebook, da qual participo, entrou na discussão sobre as declarações de Lars Von Triers. Interessantíssima, aliás, porque nos coloca frente a questões complexas e dilemas não totalmente resolvidos. Defendemos a liberdade de expressão doa a quem doer? O artista tem direito a falar o que lhe der na telha? Mas ele não é um cidadão como qualquer outro? Mas e se o que ele fez foi apenas uma piada infeliz? Sim, mas e daí? Deve ser expulso de Cannes? Mas e sua obra, não? Artista e obra são separáveis ou não?
Desafiante, nada trivial. Deu vontade de pensar um pouco.
Antes de mais nada, devo dizer que ADORO a obra dele. Mesmo. Acho instigante, inteligente, move com regiões abissais do ser humano e sempre me faz pensar.
Mas nesse momento, lembrei de um ditado antigo: “quem fala o que quer, ouve o que não quer”. Embora eu seja contra a censura, principalmente quando se trata de obras de arte, as declarações do cineasta não faziam parte de sua criação artística. Ele falava como cidadão. E, como cidadão, artista, deputado, médico, desempregado, policial ou gari, é tudo igual – ou devia ser, né? É isso que se propõe em uma democracia...
Aí, mesmo que a gente defenda a liberdade de expressão, também há limites – e eu concordo que tem que haver - para as loucuras que saem pela boca de uma pessoa. Porque elas atingem outra. Tem a famosa frase: “A liberdade de um termina onde começa o direito de outro”. Então, se a pessoa não sabe ou não consegue se controlar, não tem esses freios internos, não tem a delicadeza de perceber que está ferindo outras pessoas – e, infelizmente, muitos artistas têm enorme dificuldade para ver o outro – a sociedade vai ter que dar um jeito de colocar esses limites. Porque todo ato tem suas consequências, a gente também não pode ser ingênua de sair xingando os outros e achar que ninguém vai se importar (até porque, na maioria das vezes, a pessoa quer mais é que os outros se importem, de um jeito ou de outro!). Se formos pensar bem, a total liberdade de expressão na verdade não existe na vida em sociedade, porque o sujeito que sair falando o que lhe der na veneta algum dia poderá ser processado por calúnia, difamação, etc. (Isso se antes não levar um tapa, um soco, um tiro...)
Alguém pode dizer: “Ora, mas ele não xingou ninguém, apenas fez uma piada de maugosto dizendo-se simpático a Hitler!”. Então acho que também seria ingenuidade vermos as coisas assim. Primeiro, se pensarmos nessa forma de humor: se foi uma piada, foi em forma de ironia, de deboche, que é algo muito diferente de tornar as pessoas mais alegres, com intenção de confraternizar e fazer outras pessoas rirem junto conosco sem fazer mal algum, sem reduzir ninguém. A ironia, o deboche, é um modo disfarçado de ferir, de espicaçar o outro. Mesmo inconsciente, houve uma intenção nada agradável. Depois, quando se fala em simpatia por ninguém menos que Hitler – Hitler! -  não dá pra esquecer que o cara foi responsável por um dos períodos de maior barbárie da nossa história, pela morte de milhões de pessoas e que isso causou feridas até hoje muito fundas e vivas. Tanto é que até hoje é tema de livros, filmes, peças, etc. Então podemos entender que esse deboche é dirigido às pessoas que mais sofreram com o holocausto, e podemos entender que essas pessoas recebam as declarações de Von Triers como um xingamento. Porque é quase como se ele dissesse que não só não se importa com o sofrimento delas, como considera que foi correto todo o sofrimento que lhes foi imposto.
Aí, haverá consequências, certamente. Não que eu as defenda. Estou apenas tentando entender e refletir sobre tudo isso. Porque, teoricamente, talvez fosse bom se a pessoa um dia pudesse falar uma insanidade dessas e ninguém se importasse (insanidade, considero essa declaração como um lapso de demência, mesmo). Porque de tão bárbara, todos teriam certeza de que é loucura e, portanto, teriam como reação apenas um muxoxo e dariam de ombros. Não valeria a pena sequer gastar energia com isso. A não reação também seria sinal claro para todos de que já não nos importamos, porque já mal lembramos quem é Hitler, porque há muito que as feridas já teriam cicatrizado. Um dia.
Por outro lado, seria também um péssimo sinal chegarmos um dia à situação em que as palavras de um dos nossos maiores cineastas não têm nenhuma importância. Ou seria sinal de que as palavras, em geral, não mais afetam as pessoas. Que as pessoas definitivamente não se importam umas com as outras, que as pessoas estão definitivamente surdas umas às outras.
Não, ainda não estamos lá - ou nunca estaremos. Sei lá.
Em todo caso, gosto sempre de pensar que a arte vale mais do que o artista. E como arte e artista não são a mesma coisa, isso quer dizer que, separáveis ou não, de modo geral a melhor parte do artista são as suas obras. Daí que posso não concordar com o fato de Cannes ter expulsado Von Triers, mas aplaudo a manutenção de sua “Melancolia” no festival. Estou louca pra ver.
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terça-feira, 17 de maio de 2011

penas & panos

Foi o nome da nossa mostra na festa Literária de Santa Teresa, que aconteceu npos dias 14 e 15 de maio. Eram trabalhos de alunos da escola Júlia Lopes, criados na Oficina que ministro junto com o Fabiano Fernandes.
A leitura do livro “PAPO DE PATO” proporcionou um voo unindo palavras e objetos: a poética de Bartolomeu Campos de Queirós e a investigação materializada pelas crianças.

palavras:

Na história há dois patos: um tem penas e o outro, não. O pato pelado pede algumas penas ao outro, que arranca metade das que tem e lhe dá. Então os dois ficam iguais: metade pelados e metade penados.
Jogando com a sonoridade e os significados da palavra “pena”, o autor tece um lindo texto sobre a diferença, o reconhecimento da falta e a possibilidade de pedir, a capacidade de ver o outro e poder doar.

objetos:

A proposta aos alunos foi a criação de 3 tipos de patos: penados, pelados ou “meio a meio”. Eles ficaram encantados quando levamos os materiais: penas, retalhos, isopor, cartolina.
O mais difícil não foi colar as peninhas em bolas de isopor.
O complicado é que eles só queriam fazer patos penados!
Compreensível. Saudável. Ninguém quer fazer um pato pelado. Porque é como ser pelado. É como não ter. É ter que lidar com a falta. Difícil, mesmo.
Conversa dali, a história de lá, e aos poucos se descobriu a beleza de texturas e tecidos. A combinação de cores. A riqueza, a possibilidade de harmonizar diferenças. A necessidade de aceitar, em si e nos outros, faltas e falhas.  
Os alunos se divertiram e riram muito percebendo-se em situação paralela à da história, pois era preciso compartilhar tudo com os colegas (tecidos, tesoura, cola e, literalmente, penas!!!) 
No final, as palavras mais marcantes foram parar debaixo das asas.
Palavras lindas, que nos ajudam a acreditar nesse voo.

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quarta-feira, 11 de maio de 2011

as loucas de maio

Cheguei mais cedo numa escola onde dou uma oficina. As professoras tinham reunido umas 80 crianças no pátio para fazer uma homenagem às poucas mães que compareceram – era plena 2ª.feira à tarde, a maioria trabalha.

Primeiro foi a turma das menorzinhas, umas 10 crianças de 6 anos cantando “a capella”, timidíssimas, coitadas, quase um paredão de fuzilamento na frente de professoras, funcionários, enfim, diante de toda a escola. Então sorri, solidária. Depois da primeira vergonha, elas se soltaram um pouco mais e pudemos ouvir a delicadeza daquelas vozes, tão lindas quanto frágeis, tão tocantes justamente por sua inocência e hesitação.

A música seguinte foi cantada por todos os alunos juntos. Foi uma onda, foi inevitável: eu me  percebi ali, naquela escola pública semiabandonada, caindo aos pedaços, à beira da favela, entre crianças pobres, às vezes subnutridas, algumas de chinelos, camisas rasgadas, sujas, cantando para poucas mães, igualmente pobres e abandonadas. As poucos elas elevavam a voz, as crianças agora cantavam a plenos pulmões e embora meu senso crítico reclamasse da música cafona, a garra das professoras regendo aquele coro dos desvalidos criava uma imagem inusitada que fundia força e insanidade: essas mulheres loucas, carismáticas, que ganham pouquíssimo, me apareceram comparáveis às mães da praça de maio. São elas agora as nossas loucas da resistência, visionárias e revolucionárias; elas são hoje o reduto da mais profunda e verdadeira resistência, pois constroem sua própria existência a partir de valores completamente contrários aos da ordem capitalista vigente. Elas não têm lucro, elas não pensam no lucro, elas não pensam em competição, não sabem de marketing, não sabem do mercado, da bolsa, do euro, das ações. As loucas vivem e trabalham em condições miseráveis e  insistem em ensinar as crianças a cantar e a demonstrar afeto.  
Então foi assim que eu me peguei chorando.    
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quarta-feira, 4 de maio de 2011

vida ou arte ?

Ensaiava em casa uma cena com uma colega. Então ouvimos a mulher aos gritos:
- Mentiroso, você é um canalha! Mentira!
Moro no térreo, com uma pequena diferença de altura que faz da minha janela um camarote para a rua. Dali, meio escondidas pela cortina, assistimos a cena, muito melhor do que a nossa: a mulher brigava em altos brados com o namorado, amante ou algo assim, exatamente na frente do meu prédio. Encostado na mureta, o culpado não falava nada, só resistia aos impropérios, safanões e tabefes que ela prodigalizava.  
- Escroto, você foi um covarde. Você não teve nem coragem de...e você não fala nada, fica aí...
E soltava um tapão. Ele sentia a investida, o corpo oscilava um pouco, como um lutador de boxe, mas como joão-bobo voltava logo ao eixo, para em seguida repetir o balanço com o novo ataque:
- Freguesa...que freguesa, o quê! Levou ela aonde? Eu não sou palhaça!
E voou outra bofetada. Só então percebemos o táxi parado logo acima. Olhamos uma para a outra, entendendo. Aquilo era de verdade. Não era teatro, os dois estavam muito transtornados, vivendo intensamente tudo aquilo. Era o aqui e agora. Nossa curiosidade, enorme; o medo de sermos vistas, completamente egoísta: já não estávamos preocupadas com o constrangimento deles, mas por nada no mundo queríamos interferir e correr o risco de perder o desenrolar da cena.
- Podre. Podre, mesmo. Foi fazer programa com granfina. Um merda!
E bateu tanto que ele se afastou um pouco. Ainda batendo, ela foi atrás, de modo que a cena se deslocou um metro ladeira abaixo e a plateia, escondida, teve que deslizar rapidamente alguns móveis para acomodar a visão.
- Podre, mesmo. Michê! Você virou michê de bacana.
Aí ela inovou: cuspiu nele. Então houve uma pausa. Um silêncio. Os dois sentiram que tinham chegado a um novo patamar.
Depois de um tempo, ele limpou o rosto. Então, em outro tom de voz, ela falou:
- Olha o que você fez com a gente... com a nossa história tão bonita. Você estragou tudo.
Em seguida ela virou as costas e foi andando. Logo depois ele entrou no táxi, partiu.
Ficamos estarrecidas. Ela gosta dele. Muito. Eles vão voltar. Ele foi atrás dela. Mas aquela rua não dá mão. Ele faz a volta. Deve ser verdade. Ele não abriu a boca. E cada tapa! Ela tá uma fera. Ela falando da história tão bonita. Como será que...? Achei que ela tava chorando. Por isso foi embora. Pra não chorar na frente dele. Não mostrar que ainda gostava.
E tudo na minha frente, na minha janela. Foi a melhor parte do ensaio.
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sexta-feira, 15 de abril de 2011

outra do trem

o trem chacoalha e a moça se mete na minha conversa. diz que ensina – ou tenta - português, matemática e formação de copeiro, para jovens e adultos. que hoje as adolescentes não querem saber de estudar, só tão ali obrigadas, que os pais precisam do bolsa família. conta das mulheres que apanham dos maridos, muitas, exibindo marcas roxas nos braços, nas costas.
- olha aqui, fessora, olha o que que o cão fez ni mim.
e vai a outra e mostra um hematoma maior ainda, e vai a outra e conta de quando ele jogou ela na parede, e vai a outra e pior ainda...
a mestra denuncia orgulho: elas tão se gabando, elas chegam tirar a blusa pra mostrar – eu, elas, tinha vergonha até de falar, tinha vergonha que alguém soubesse, né não? coisa louca, quanto mais o cara bate, sei não...vai um dia chega uma perto do quadro negro, aquela cara de choro, perguntando o que deve fazer, que não aguenta mais apanhar. mas não trabalha, como é que vai fazer pra comer? e ela mesma, professora balançando no trem da central, ela não sabe o que falar. se falar pra largar o marido, no dia seguinte vem o cão ameaçar e tirar satisfação. e depois, quem é que vai sustentar a outra? a aluna ali de pé, esperando uma resposta, pedindo sabedoria.
- ora, minha filha, reza! pede ao pai, que jesus vai iluminar o teu caminho, deus vai te indicar o que fazer.
- mas se fosse a senhora, fazia o quê?
- nnnnão, eu, não, minha filha, que eu não tô no teu caso, tem minhas aulas, meu ganha pão...
e na outra aula escuta a mesma garota contando pra colega o dia que o cara da Light foi lá consertar: abaixando o short na frente, levantando a blusa, a barriga de fora, o dedo na boca, melosa até:
- vai consertar lá em casa! vem que eu te dou um café...
e me pergunta, toda Nélson Rodrigues: e por que vc acha q o marido bate nelas? tem um motivo, tem ou não tem?
E uma vez a aluna não gostou foi da nota que ela deu, que a professora achou que ela tinha que se esforçar mais, tinha que se recuperar...
- eu vou te quebrar, fessora, tu vai ver só. que eu sei que tu mora na Penha. eu venho lá do Vidigal, vou eu mais minha turma, vou lá na tua casa, te arrebento. tu quando vê um carro vermelho chegando na tua rua pode saber que sou eu que vou lá tirar a limpo essa nota, que isso não vai ficar assim, não. pode escrever.
a mestra engoliu seco, mas não mudou a nota. também não passou recibo. ficou quieta, pensando, 3 noites sem dormir. o pai falando pra ela largar esse emprego, o marido meio lesado não fala nada e ela, o q vai fazer? depois das 3 noites sem dormir, ela chega pra aluna e fala baixinho, rastejante:
- olha aqui, vc pode vir de carro vermelho ou amarelo ou verde ou preto que eu não tenho medo. se vc é do Vidigal, eu sou da Penha, e se duvidar, eu que vou lá na tua comunidade. e se vc vê um carro cor de abóbora pode ter certeza que sou eu com meu pessoal que eu não vou levar acerto de aluna coisa nenhuma que eu já dou aula tem mais de 10 anos pra eu não saber que essa é a nota que ocê merece, olha bem. e trata de estudar, senão, não passa.
e ficou assim. 
já saímos do vagão quando ela reconhece rindo:
- sinceridade? eu bem fiquei de olho... cada carro vermelho que passava, eu apertava a mão da minha filha!
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terça-feira, 29 de março de 2011

simples mágica

Naquela noite tinha uma estreia badalada, mas estava exausta. ainda assim, antes de subir pra casa fui ver minhas sobrinhas. saudades. a maior não me deu a menor chance, mas Antonia, que aos 3 anos procurava alguma ordenação para suas “Babuskas” – aquelas bonecas que entram umas dentro das outras - me aceitou como ajudante. muito provavelmente, porque a tarefa era bem complicada: várias metades abertas, as cabeças afastadas das pernas, todas espalhadas, algumas invertidas, outras deitadas, peças faltando. fomos conversando, tentando encaixar as partes:
- onde estão as pernas dessa daqui?
- perdeu.
- onde que perdeu? vamos procurar.
- não, perdeu não, eu joguei fora. jogueeeei. (acompanha gesto indecifrável)
- você jogou fora, Antonia? por quê?
- a mamãe falou que não podia jogar na janela, daí eu joguei.
tá certo. provou que podia.

Comecei a enfileirar as bonecas em ordem decrescente.
- nãããão!!! não é assim.
-não?
ela pegou a menor bonequinha, abriu a maior e jogou a pequena dentro.
- pronto. a filhinha tá dentro da mamãe.
- e as outras?
- as outras ficam brincando aí.
e encerrou a brincadeira, completamente satisfeita com o resultado.

Em seguida ela acha na gaveta uma “Barbie” com rabo de peixe, me mostra:
- eu sou ela.
adoro essa frase. é babando que respondo:
- que linda, uma sereia! então você vai nadar pelos mares e encontrar um monte de peixinhos...
ela não se faz de rogada e já circula pelo quarto mergulhando com a Barbie-sereia numa mão e remando com a outra. eu continuo alimentando com história de conchinhas e espumas, até que ela pára de repente e pergunta a queima-roupa:
- você é quem?
sou pega de surpresa e em fração de segundos tenho que decidir minha vida: onde estamos? qual o plano narrativo? será que ela não sabe, será que me esqueceu? devo explicar que sou a tia, que já estive...ela aguarda enquanto eu me desespero – deus, qual a resposta correta? eu me procuro olhando em volta e enfim escolho uma boneca de asas azuis.
- eu sou uma borboleta!
ela sorri, surpresa.
estou salva e agora dançamos as duas pelo quarto: atravesso nuvens riscando o céu com minhas asas enquanto Antonia sereia desvenda oceanos de fantasia.
mágico. simples assim.
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segunda-feira, 21 de março de 2011

humanos

Há os que de longe já se vê, há os que pedem maior proximidade...Ninguém é normal.

Mulheres também, claro, mas tenho encontrado principalmente homens assim. Um peito estufado que não desincha nem na expiração, um queixo levantado, o olhar por cima, uma expressão que passeia entre a arrogância, o desprezo e uma pseudo paciência para com os outros, como se a verdade sobre a vida e o mundo fosse, indiscutivelmente, parte de seu patrimônio exclusivo. A mim, simples mortal, quase carmelita descalça, como dizem, soam estranhos esses ares de poder. Talvez nem tanto pela pretensão. Mais pelo que me parece uma escolha sinceramente equivocada, essa opção pela feiúra, por distanciar-se da delicadeza, do afeto, do calor. Pois não é que a beleza está em fazer-se mais e mais humano? Eu acho.

Mulheres também, claro. Na festa da lua cheia, dançávamos eufóricos e eis que, sem pedir, sem querer, me cabe assistir um barraco do começo ao fim. Diga-se de passagem, o som estava altíssimo, então a cena foi como um filme mudo, em que era preciso inventar os diálogos. A baixinha oxigenada chegou com uma amiga que, ao ver o cara lá, tentou logo afastá-la, mas a mulher já tinha visto o namorado com outra e instantaneamente começou a confrontá-lo. Inicialmente eu só percebia, e de costas, as posturas raivosas que o corpo da loura ia assumindo. Em relances, via as caras e bocas surpresas, constrangidas, do homem e de sua acompanhante. A festa corria solta, a turma dançava e pouquíssimas pessoas perceberam quando ela avançou e lançou o primeiro tapa na cara. O rapaz, bem mais alto que ela, apenas se encolheu, a mulher que estava com ele tentou moderar a situação, mas parece que elas conheciam, de modo que a saia justa ou a falta de reação fez a loura ganhar coragem e soltar o segundo tabefe. Uma amiga me viu perplexa:
- Não olha, não olha!
Como, assim? Não olhar? Como, se aquilo era a coisa mais interessante que estava acontecendo?
Vimos quando a baixinha se superou, o agarrou pelo pescoço e o agrediu com a outra mão. Ela era uma massa compacta de ódio. Só então algumas pessoas separaram o casal, e só então vimos de frente o rosto da  loura, completamente transtornado. Juro, era o lobisomem. Vai ver foi a lua cheia. 
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domingo, 20 de março de 2011

uma Clarice dadivosa?


Eu esperava no ponto. Veio um outro ônibus, parou e logo recomeçou o movimento.  Um pouco mais à frente uma moça corria desajeitada para pegá-lo. O motorista, um branco careca, atarracado e usando óculos, sorriu bonachão. Parou, esperou que ela entrasse. Logo que retomou seu curso, uma outra senhora com sacolas se arrastava como uma pata, mirando o coletivo com a esperança dos sem saída. O motorista mais uma vez sorriu, mais uma vez parou e levou mamãe ganso com suas compras.
Dizem que é proibido parar fora do ponto. Já eu, naquele instante, amei aquele homem. Juro, fiquei com vontade de dar para aquele motorista. Não por fome. Não por carência, nada disso. Mas por pura reciprocidade.
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sexta-feira, 18 de março de 2011

descaminhos

vejo o corrimão dourado colado na parede, olho os degraus de mármore que se desdobram à minha frente. vejo do alto? pessoas atrás de mim impacientes com minha dúvida. depois de alguns segundos de árduo processamento interno, finalmente me localizo. centro cultural do banco do brasil. é isso. acabo de ver a exposição do Escher, sigo pela escadaria dos fundos sem saber se subo ou desço. quem é que me garante agora que esses degraus descem? quem é que me garante que depois disso tudo eu chego em casa? quem é que me garante que eu sou aquela pessoa ...que entrou por ... por onde ...? deixa pra lá. mas quem é que hoje em dia garante alguma coisa, deus do céu?
agora só quero que meu caminho me encontre. 
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segunda-feira, 14 de março de 2011

noronha 2011

em Fernando de Noronha a gente ainda tem a sensação de contato com uma natureza selvagem. Nas águas cristalinas, milhões de peixinhos coloridos, solitários, em trios ou cardumes, peixes grandes, de quase meio metro, nadam entre nós e é como se não existíssemos. Tartarugas gigantes sobem à tona, descem, comem. São tão donas de tudo que é preciso cuidado para não tocar nelas sem querer – um amigo diz que viu algumas copulando. Ficou olhando...sabe lá quanto tempo elas demoram? Vi arraia dançando, nadando como borboleta, vi um tubarão pequeno em águas rasas e outro maior no mergulho profundo. E dezenas de golfinhos pulam, acompanhando o barco. parece filme, parece sonho.
em terra, umas aves estranhas, diferentes – lembrei de Darwin nas ilhas Galápagas – fazem ninhos em árvores altíssimas e lançam suas sobras nos humanos que querem sombra.  E tudo é grande, tudo é muito, a generosidade de formas, dimensões e cores me deixa exausta de tanto olhar. E não há compromissos de horário e o tempo passa devagar.
mas uma das coisas que mais me impressionou foi a população local. São muito simples, suaves, em maioria homens, de uma solidão sem fim. “Neuronha”, dizem. Grande novidade, diria vc, o mesmo que em qualquer cidade. Talvez. Mas lá é uma ilha, é quase um presídio – aliás, já foi. As opções – de contato humano, de conhecimento, de lazer - são muitíssimo mais reduzidas, bem menos frequentes. Os turistas chegam e vão embora, os nativos sempre permanecem. Então os contatos, efêmeros, têm um outro tempo, naturalmente acelerado: a intimidade é quase instantânea, as diferenças sociais ou culturais são zeradas e somos todos corpos mergulhados nessa natureza afrodisíaca. felicidade, volta à Mãe gaia.
cheguei pensando nessas barreiras que inventamos. Acho que seríamos mais felizes sem elas. Não me pergunte como seria viver um tempo longo sem elas.
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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

nas escolas do amanhã...

A Oficina "Encontros de Leitura" foi ministrada em 2010 para alunos das escolas municipais E. M. Mascarenhas de Moraes (no bairro do Caju), E.M. Djalma Maranhão (no Vidigal), CIEP Dr. Bento Rubião (na Rocinha) e na E.M. Fernando Barata Ribeiro (em Santíssimo), integrando o projeto “Segundo Turno Cultural”, da Prefeitura do Rio de Janeiro. 


Trata-se de uma roda de leitura intercalada com atividades artísticas ligadas às histórias contadas, nas áreas de artes plásticas e artes cênicas. 
Com isso, temos os objetivos de:
- estimular o interesse pela leitura;
- criar um ambiente que propicie o livre debate e a reflexão;
- fomentar o exercício da criatividade;
- ampliar os canais de expressão artística.

Olha o vídeo do 1o. semestre:


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