quarta-feira, 8 de outubro de 2008

o maracanã, a rainha da Inglaterra e os paraguaios

A primeira vez que fui ao Maracanã foi uma experiência muito traumática. Jogavam Brasil e Paraguai. Parece que era eliminatória de algum campeonato. Nunca acompanhei muito futebol. Depois desse dia, menos ainda... Só sei que, prá meu azar de estreante, o estádio estava completamente lotado - até a rainha da Inglaterra estava lá. Eu tinha uns 10 anos, fui levada por meu pai e um amigo dele – ambos paraguaios. Como evidentemente não existia uma torcida do Paraguai, sentamos onde foi possível. Muito tempo depois vim a saber que tinha sido recorde de público.
No primeiro tempo, apesar da tensão permanente como intrusos, esmagados por torcedores brasileiros de todos os lados, acompanhei a partida, intrigada com aquele estranho goleiro que corria no meio dos outros jogadores.
- És el juéz, esclarecia meu pai, falando baixinho com medo de ser descoberto. Coitado, imagine torcer pelo seu time sem poder “dar bandeira”. E com aquela cara de índio guarani !
Tudo correu bem até a hora do intervalo, em que precisei ir ao banheiro. Fui com meu pai enquanto o amigo tentava guardar nossos lugares sem emitir um pio. Na volta, o jogo já tinha começado e era impossível - parecia impossível – atravessar aquela muralha brasileira. E meu pai não podia emitir um pio, ou seríamos fatalmente trucidados ! Ele apontou para onde estava o amigo, falando baixinho:
- Allá está.
Moisés talvez tenha se sentido assim ao atravessar o Mar Vermelho, algo como suplicar para que aconteça alguma coisa que a gente não pode nem imaginar o que é. Rezar pelo milagre. No nosso caso, o mar de brasileiros não se abriu: eles me pegaram nos braços, me levantaram.
- Olha a criança, cuidado com a menina...
E depois:
- Olha o velho, vai passando...
A torcida nos passava de mão em mão, deitados, por cima das cabeças:
- Prá lá, passa prá lá.
Meu pai, branco, caladíssimo, só apontava em direção ao amigo, que acenava incrédulo. Desesperada, sem tocar os pés no chão, não pude nem aproveitar aquele momento histórico: nos braços do povo, em pleno Maracanã, a menina levitando fazia muito mais sucesso do que a rainha Elizabeth.

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quinta-feira, 25 de setembro de 2008

amor selvagem

Foi à primeira vista. Caminhavam pelas aléias do jardim; era a parte final da entrevista. O professor explicava qualquer coisa a respeito dos macacos quando seus olhos se encontraram. Ao seu lado, a voz do mestre tornou-se um murmúrio longínquo enquanto ele admirava a cabeça desenhada, as narinas dilatadas. Paralisado, ouvia seu próprio coração em sobressalto. Do outro lado do vidro, ela parecia hipnotizada. E foi quase sofrendo que ele chegou a se perguntar: seria verdade ? naquele belo corpo frio e esguio, caberia mesmo um coração ?
A interrupção do professor, acertando detalhes para o início do trabalho no dia seguinte, soou como promessa de felicidade. Nos 8 meses seguintes, viveram fases dignas de um começo de namoro: diariamente ele a visitava em seu habitat, alimentando-a enquanto alimentava o sonho de tê-la a seu lado para sempre. Ela, voraz, aceitava os presentes, mantendo-se sempre distante, desconfiada.
Os colegas incrédulos debochavam, alertando:
- Nunca vai conseguir, deixa de ser louco. Ela é escorregadia...
- Toma cuidado, é traiçoeira !
Ele dava de ombros, afirmando que ela não tinha veneno algum.
O fato é que dia a dia aquele amor selvagem o devorava, lhe comia as entranhas. Não podia mais. Uma noite afinal decidiu. E nessa madrugada foi visitá-la. Com sua melhor roupa, entrou subrepticiamente no refúgio da sua amada, aproximou-se do cantinho onde ela dormia.
No dia seguinte, foi logo cedo que o encontraram: ela enroladinha nele, abraço de amor, já tinha começado a comer seu braço. Ele não respirava mais.
Disseram que o rapaz queria domesticá-la.

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terça-feira, 12 de agosto de 2008

O casamento de Monse

Aconteceu quando fui visitar meus parentes em Assunção, Paraguai. Minha prima Monserrat e a amiga Edith, que passaram a tarde se preparando, foram elegantíssimas e cheias de expectativas a uma festa de casamento. Há muito não se fazia uma festa tão sofisticada como aquela. Já no jantar, quando o amigo viu o salmão servido na bandeja de prata, não teve dúvidas: levantou e foi comer um sanduíche árabe numa carrocinha de rua. Logo um outro, querendo brincar com Monse, dá uma puxadinha no seu rabo de cavalo. Qual não foi o susto quando ficou com os cabelos dela na mão ! Depois de um rápido constrangimento, não pôde deixar de rir. Aproveitou e começou a gritar no meio do salão: “la enana usa peluca ! la enana usa peluca ! “. Também não pôde deixar de rodar o trunfo no ar como um laço para novilhos: “la enana usa peluca ! “. Todos dançam, todos bebem até cair. A certa altura, a noiva também cai, o noivo, tentando segurá-la, não consegue se apoiar e desmorona com um pedaço do vestido branco na mão. Quando Monse vai caindo, um amigo tenta ajudá-la, arranha todo seu braço mas, mesmo parecendo câmera lenta, a gravidade está lá: eles abraçam juntos o chão. Importante registrar que toda a preocupação da Monse bêbada é a peruca, emprestada da irmã, e o xale, emprestado da mãe de uma amiga. A noiva, ao saber que a suíte do hotel custou 300 dólares: “trecientos? estás loco ! qué hotel, vamos a tomar, 300 dólares de caña !” Edith, bêbada, vai para o banheiro e simplesmente desaparece da festa. Às 3h Monse volta para casa arrastada, ajudada por dois amigos. Na mão de um, a peruca, na do outro, o xale, ela no meio. Trêbada. Entra no banheiro, tira parte da roupa, entra em seu quarto – onde eu estou dormindo – acende a luz, remexe à procura de uma blusa, apaga a luz e some. Durmo imaginando que ela tinha ido para o quarto da irmã. Que nada, dormiu no banheiro! Às 5h, sem nenhum aviso, ela entra no quarto, levanta a coberta da pequena cama de solteiro onde eu estou e deita, quase em cima de mim. Rapidamente me afasto, colando na parede. “Monse, vás a dormir conmigo?” Ela não responde porque já está dormindo. De brincos e maquiagem borrada. Então, começa a roncar. Como eu poderia dormir com uma mulher na minha cama? E uma mulher que ronca ! É quando ouço um novo barulho, como o ronronear de um gato, um pombo. Várias vezes seguidas, depois pára. E Monse roncando. Que sinfonia ! Outra vez o estranho barulho, que se repete seguidamente. Sento-me na cama, procuro em volta, nada. Monse ronca. Na terceira vez, descubro através das cobertas uma luzinha verde que pisca... é o celular que está no vibrador, em sua cintura. Às 7h finalmente desisto de dormir e me levanto para sair.
Mais tarde, as explicações. As ligações para o celular da Monse ? Era Edith. Onde estava, por que sumiu ? Caiu bêbada no banheiro da festa e lá ficou. Quando acordou não tinha mais ninguém. Ligou para os celulares de todos os amigos – 78 vezes ! Afinal, sem ter como sair de lá, já de manhã, a elegante moça, meio desgrenhada, mas de vestido fino, bolsa, saltos, jóias, pôs-se a jogar “truco” com o vigia, de quem conseguiu extrair, entre blefes e apostas, aproximadamente 2 dólares. Com a renda pegou um táxi e foi para casa...
Eu não fui a essa festa. Mas ela foi inesquecível.
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sábado, 12 de julho de 2008

e prá você ?

Na volta prá casa, uma das pistas da Av. Maracanã interditada e sou obrigada a tomar a da direita. Sem querer dou uma fechada num táxi. Faço com a mão um gesto pedindo desculpas, já esperando a raivosa tempestade de impróperios que sem dúvida, e com razão, devia desabar em meus ouvidos. Logo o táxi emparelha ao meu lado, chego a me encolher no assento à espera da violenta onda. Continuamos lado a lado no trânsito lento, não ouço nada, mas sei que devo criar coragem e olhar para o lado. Afinal, é preciso ter “vergonha na cara” e pedir desculpas, é ou não é ? Então preparo minha melhor expressão de humildade e profundo arrependimento, algum esboço de sorriso tipo “foi mal, mas acontece com todo mundo...”
E qual não é a minha surpresa ?
Quando me viro, o script vai por água abaixo, perco completamente o rebolado, ao ver no volante do táxi um jovem bonitão que me olha “com olhos de comer fotografia” ! Tive que rir do inusitado: que maravilha, a capacidade de transformação da vida ! Ou a sabedoria dos taxistas cariocas! Agora sorrio agradecida, o que ele já entende como um consentimento para a paquera. Os carros avançam, desemparelhamos, eu nem acredito mas já começo a gostar daquilo... ele vem, de propósito segura a fila para me esperar, imagine, com um passageiro atrás, e entre encontros e desencontros vamos nos divertindo em pleno engarrafamento. Até que, emparelhados de novo, ele sinaliza com o celular. Enquanto a lua cheia fala de amores e encontros, resolvo pelo bom senso: “té loguinho” ! Acelero, deixando-o preso no sinal.
Mas olha, foi muito bom prá mim !
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terça-feira, 17 de junho de 2008

centro

Um começo de tarde assim: vendo-estranhando o mundo, nervos à flor da pele, uma atmosfera quase palpável do tempo que encosta na gente e flui só bem devagar. Assim que cheguei no centro, sem saber bem o que fui fazer, vi a muralha robocop dos soldados de César. Então é isso, meu Deus ? me fez vir até aqui prá ver a guerra ? E já me doía o coração, e mal segurei umas lagriminhas antecipadas.

Caminhando me reconciliei, achei que as intenções eram outras: ai, que bom, então era prá vir até o Paço olhar essas maravilhas. E sempre que assisto arte acho que aprendo muito mais de tudo do que por qualquer outra forma. Vontade de ficar lá o resto da tarde e nem voltar para o curso das coisas, ficar na arte o resto da vida, que a verdade penso é que é ali que está a vida, nada mais.

E a sala da fase negra do Serpa me fez as pernas bambinhas, e a vontade de chorar mas ao mesmo tempo de rir quando pensei: sou louca, mas vou chamar o guarda dizendo “acode aqui, que de repente a gravidade aumentou e eu me arrasto, se duvidar chega a hora de fechar e eu não consegui alcançar a saída, fico presa até a morte, logo nesta sala tão triste e sofrida, não quero, esquece o parágrafo anterior ! “

E depois o ateliê do José Camargo – tô na dúvida se é José mesmo. Amei aquilo! Vontade de aprender, mexer com mármores e formas. Olhei a cadeira dele atrás da mesa: ô, seu Camargo, é muito lindo o que você faz, eu ía gostar, será que você me ensina ?

E no fim o Mourão e as grades, ai, não gostei muito, como gostar da prisão?

E parece que era tudo encaixado, tudo já amarrado, porque foi sair dali, olhar uns camelôs meio engatilhados prá fuga e na outra esquina um susto, dou de cara com a gang robocop. Fiquei branca no ato, de novo as perninhas bambinhas, e eu no lugar de um camelô, tinha feito o quê ? Que nem a galinha do Cidade de Deus, corre que vai morrer de qualquer jeito.

É, sim, uma prisão, não ter emprego e ter que comer e ter que ser camelô e ter que fugir dos robocops do César que nem galinha antes de virar canja. Não é muito melhor estar no Paço vendo arte ?

E eu me pergunto como é que faço prá viver e comer, não sou camelô nem galinha, e como é que vendo arte ? É uma guerra.
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quarta-feira, 14 de maio de 2008

feira

barracas listradas, verduras, frutas
vermelho melancia, tomate, repolho roxo
rúcula, sálvia, endívia, alface, agrião
feirantes se oferecem:
- A senhora não vai provar a minha laranja ?
- A moça hoje não quer o meu melão ?
atravessa oceano de lonas, cordas, mastros
caravela sangrando
sorri
todos perdidos
moça, senhora
- Experimenta, olha que doce tá a manga hoje !
- Quem quer alho? A menina não quer alho ?
agora, menina.
mais jovem a cada passo
acena com suavidade etérea
sem muita fé
diz apenas “bom dia“
- Tá bonita...
não sabe se é ela ou a fruta.
ela mesma fruta madura
prova todas
não compra nenhuma.
atrás o séquito de anjos
alho, limão, maracujá.
à frente
o mar de gente se abre
silêncio
zumbido reverente
moscas, cães, admiração
tapete vermelho, cetro, coroa
caminha lânguida, tranquila
dá ao mundo absolvição.
a um palmo do chão
desliza
totalmente saciada
abençoada.
já não é preciso
abrir o gás, afiar a faca
pendurar a corda, tomar soníferos.
não, nada de terapia
basta ir à feira todo dia.


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quinta-feira, 1 de maio de 2008

programa duplo II

Segunda-feira de manhã cedo, metrô de São Paulo, entram as duas no vagão. Uma loira oxigenada, uma morena com algo de oriental, meio tortas, cansadas, rindo às gargalhadas. As duas de calças jeans apertadíssimas, blusinhas idem deixando barrigas à mostra. A loira esbarra na minha mala, quase cai no meu colo, pede desculpas rindo, senta ao meu lado. Fala alto, o vagão inteiro participa da conversa das duas:
- Cara, eu não acreditei: “coca-cola, gelo e limão”. Claro, um pouco de gim, sim, sim ! Háháhá...
A morena encosta na porta:
- No meio da noite, não quis nem saber, tava morrendo de sede, abri aquela geladeira e mandei ver. O cara nem...!
A loira tira o dinheiro do bolso de trás, conta lentamente à vista de todos: 2 notas de 50, 5 notas de 20. Grita eufórica:
- Eu quero repetir ! Eu quero é mais !
- E ainda dá tempo de chegar na loja, só um banho.
- O cara: "pisa, pisa" ! Háháhá... Da próxima vez, vou pisar, mesmo !
Elas riem desbragadamente, acabo rindo junto.
Descem duas estações depois.
Sei lá porquê, fiquei até com pena do cara.
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quinta-feira, 24 de abril de 2008

separação litigiosa

Desço do ônibus diretamente no meio de uma briga acirrada entre um casal de mendigos:
- Tó, toma o teu anel.
Ela tira do dedo e o joga na cara dele. Sai correndo no meio da rua, entre os carros. Ao meu lado ele se abaixa, pega o anel, pensa um pouco. Logo depois, vai atrás dela, atravessa a rua como louco, batendo no capô dos carros, a pega pelos cabelos.
- Tu vai enfiar a cara na lama !
Mas ela desvia e se livra dele. Pega algumas roupas no chão, debaixo da marquise do banco, faz uma espécie de amarrado, que levanta acima da cabeça num safanão. Enquanto ele olha apalermado, ela vai embora sacudindo as roupas, gritando e rindo:
- Ó o que tu é, ó o que tu é !
Confesso que demorei até entender, mas o poder de síntese daquela mulher não deixava dúvida: o trouxa era ele.
Fez sentido. Afinal, ela perdeu um anel, mas ficou com todos os outros bens.
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terna idade

Olhando vitrines uma das amigas se entusiasma com as roupas:
- Olha, são muito baratinhas !
A outra lhe chama a atenção:
- Mas tão vagabundas ! É melhor comprar algo de mais qualidade, que dure mais. Um bom tecido dura uns vinte anos.
Ao que a primeira responde:
- Vinte anos ? Menina, toma jeito, é muito ! Você tá com 70 anos. Prá que é que você quer uma roupa que dure tanto, se você não vai durar até lá ?
A outra arregala os olhos, pensativa:
- É, mesmo...
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terça-feira, 8 de abril de 2008

assim

meu poema é vara, linha e anzol
isca que o abismo mordisca.
meu poema é rede, é laço
é puçá que caça o vento
armadilha de passarinho inventado
cão farejador de fantasmas
detector de ouro e metais.
meu poema fala de mares profundos
e regiões escuras, de submundos.
meu poema é poço e petróleo
é todo um sistema
dutos e bombas
homens e sombras.
meu poema não resolve
mas equaciona o problema
traz sempre à tona
esquecidas essências minerais
assim me alivia a guerra
me esvazia a terra
de dores e cólicas ancestrais.


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segunda-feira, 7 de abril de 2008

é tudo verdade

Essa aconteceu mesmo.
Há uns 10 anos atrás, já bem tarde, eu voltava de carro e resolvi abastecer no antigo posto Mengão, na Lagoa. Perto do sinal fui reduzindo prá evitar assalto e então ouço uma freada violenta de um carro na pista do outro lado. Logo vejo um homem correndo, perseguido por outros dois ou três. Pensei logo: olha o ladrão aí ! Eis que o tal ladrão atravessa pelo meio dos carros, dá de encontro com um automóvel que vinha mais rápido e simplesmente voa uns 4 metros acima do solo, caindo em pleno asfalto, no meio da rua. Está morto, pensei. É a primeira vez que vejo alguém morrer assim, na minha frente. Nesse instante as pessoas que o perseguiam entraram num carro perto do Estádio de Remo e arrancaram cantando pneus, seguindo em direção ao Rebouças.
Tentando entender o que acontecia, volto minha atenção para o morto e o carro que o tinha atropelado. Então o pseudo-morto se levanta e entra correndo no carro, no banco do carona, enquanto pela outra porta sai a motorista gritando e pedindo ajuda. Bem, eram umas onze e meia da noite, uma mulher sozinha estava sendo assaltada... podia ser comigo... nem sei bem o que ía fazer, mas fui solidária: dei uma ré, colocando-me atrás do carro dela. Pelo menos seríamos duas a gritar ! Nesse momento, mais que depressa, o pseudo-morto-ladrão saiu do carro à frente, abriu a porta do meu carona e entrou. Pânico !!! Eu já estava quase gritando quando vi que ele segurava um dos braços com a outra mão.
- Quebrei o braço, pelo amor de deus, me ajuda, eles tentaram me seqüestrar, me leva pro hospital.
Tudo rápido demais, eu tentando processar a transformação do réu em vítima, e então a atropeladora abre a porta do lado dele e começa a puxá-lo prá fora, gritando completamente ensandecida:
- Fui eu que atropelei, eu que tenho que levar pro hospital !
O raciocínio dela foi rápido. O meu, nem tanto, e era perplexa que eu via o ex-pseudo-morto-ladrão, agora quase-seqüestrado, dentro do meu carro, protegendo o braço quebrado e resistindo bravamente ao ataque da mulher que o queria de volta. Sei lá porquê, talvez pelo meu silêncio embasbacado em contraste com a gritaria dela, só sei que em poucos segundos ele pareceu confiar mais no “kinder Ôvo”. Bem, certamente o meu Ford Ka não teria, mesmo, zunido o cara tão alto... provavelmente, no impacto, meu adorado carrinho teria sido amassado como lata de cerveja... ui ! O fato é que o cabo de guerra entre o meu indesejado co-piloto e a pseudo-frágil atropeladora, cada vez mais desvairada, durou ainda alguns segundos, tempo que levei prá retomar a lucidez e assumir a coordenação do “bonde”: ele vai aqui, ela que fosse nos seguindo.
- Mas chegando lá eu é que tenho....
A louca gritava entrando no carro.
- Tá, no hospital você faz com ele o que quiser !
Ela achava que eu iria raptar a sua vítima ? de braço quebrado ? prá quê ?
Bem, ainda nervosa, com um olho no volante e outro ligado nos movimentos do estranho à minha direita, ouço a história: que tentaram seqüestrá-lo, o colocaram no porta-malas do carro, mas ao parar em um sinal, ele conseguiu forçar o capô e fugiu, e foi aí que... Se eu sabia onde ficava a Mitsubishi...
- Ali na Bartolomeu Mitre ? Sei.
Disse que era dono... Dono ?! Voltei a entrar em pânico. Meu deus, e se os seqüestradores voltaram e estão preparando um novo ataque e eu aqui no meio e se...
Chegamos ao Miguel Couto, graças a deus. E os berros da louca ainda no volante:
- Fui eu que atropelei !
Então ele pega o meu braço e me olha nos olhos. Achei que ía me beijar, me agradecer... Eu quase disse:
- Olha, não leva a mal, prefiro o meu "kinder Ôvo"...
Nada. Ele diz:
- Eu quero te pedir um grande favor.
Gelei. Não deu tempo nem de pensar.
- Vai até a revendedora e dá o seguinte recado prá D. Ângela...
(ou seria D. Sônia ? Isso o tempo levou ! )
- Mas e se ela não estiver mais lá ?
Eu torcendo prá gorar o favor, esquece, já é tarde !
- Aí você pede ao vigia prá dar o recado prá ela.
Ai ! E se os seqüestradores me pegarem e quiserem...
- Diz que o Davi está bem. Só isso. Não fala que eu estou aqui. Só diz que eu tô bem.
- Ah, você é o Davi.
- Faz esse favor ?
Apertava meu braço. Que jeito ? Ele desce do “kinder”, eu chego a acompanhar um pouco até ele entrar na emergência – e já chega a outra, que tinha ido estacionar o carro sei lá onde... Suspiro e me encho de coragem, que ainda tenho tarefa a cumprir nessa longa noite. Rondei cuidadosamente a loja, parei o carro um pouco mais longe – existem poucos como o "kinder", vai que os caras reconhecem ? Apavorada, espreitando a 360 graus, eu me aproximo. Lá está o tal vigia. A secretária já tinha ido, mesmo – meia noite e meia, não é mais hora ! Mas e o vigia ? E se ele não fosse, mesmo, o vigia, mas um dos seqüestradores, e se quisesse me usar para descobrir o paradeiro do Davi, e se... Pânico !!!
Bem, seja quem for esse vigia, o recado está dado. Ele bem ficou perguntando como é que eu sabia, onde estava o Davi, qual era o meu nome... Vai ver ficou pensando que eu era seqüestradora...
Nessa época eu dava aula, fui comentar com os alunos: não acreditaram, acharam que eu estava inventando ! Até riram, pode ? Pararam quando um deles confirmou. Parece que os pais eram amigos do tal Davi.

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domingo, 6 de abril de 2008

quantas lágrimas

caíram umas lágrimas minhas
no andar de baixo
ou no corredor
ou no pátio da garagem.
sei lá.
perdi de vista.
tantas eram
que perdi a conta.
como colar de contas
que de repente
arrebenta
explode aos borbotões
escorrendo
elas saem correndo
felizes
brincando
procurando um esconderijo
enquanto uma
conta até dez.
tantas lágrimas contei hoje
que em vez de lenço
passei o pano no chão.
Ai, lá vem o meu vizinho
reclamar de infiltração !


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quinta-feira, 3 de abril de 2008

maria do carmo

Separada há algum tempo, queria casar de novo. Vestia-se de vermelho e saía para a caçada. Quando via um “alvo” interessante, dava um jeito de se colocar na mira. Fatalmente ele a abordava, a voz melosa:
- Por que tanta pressa ?
Sorrindo, ela brincava:
- Ãhn...estou levando uns doces prá casa da vovozinha, lá do outro lado da floresta...
Depois de um passeio pela mata, geralmente ela se desencantava e partia prá outra. Ou se iludia, achando que, desta vez... logo se desiludia, dava um tempo, e partia prá outra.
Nunca mais soube dela. Maria do Carmo.
De repente veio a notícia, estourou como uma bomba: a menina que teria inspirado a história do Chapeuzinho Vermelho estaria viva, morando nas montanhas do Alasca. Um alvoroço, uma disputa entre as emissoras do mundo todo, repórteres, historiadores, antropólogos, tradutores.
Depois de uma longa escalada, a reduzida equipe chega às altas escarpas nevadas, onde é recebida na gruta da famosa menina, agora uma senhora dona de casa. Dona de gruta.
Batem palmas na porta. Atende um homem cabeludo, barbado.
- Chapeuzinho Vermelho ?
Ele ri, lembrando que algum dia a esposa teve, mesmo, esse apelido.
- O senhor é o marido ?
- Pois é, nem sei como é que isso aconteceu. Mas ela já volta, foi buscar lenha. Entrem, podem entrar, ela vai adorar conversar com vocês. Ah, olha ela aí !
Vem a mulher carregando um monte de galhos secos. Surpresa, sorri, cumprimenta todos e no mesmo instante ouve-se um choro de criança vindo do fundo. O marido pede licença:
- Ãhn, está na hora da mamadeira... 6 meses, a nossa filhinha. Meu bem, eles querem falar com você.
E vai atender a criança. A equipe de jornalistas espremidíssima na caverna de teto baixo, em silêncio absoluto, visivelmente constrangida, tenta se acomodar. O chefe cria coragem e pergunta com suavidade calculada:
- Senhora, sabemos que já faz muito tempo, mas existe uma expectativa...é, é uma curiosidade dos telespectadores... o que é que aconteceu com o lobo ?
- O lobo ? Quem ? Ah, o Lobo, Eduardo Lobo, meu marido. Dudu ! Eles querem falar é com você !
Lá de dentro:
- Já vou !
Cutucado pelos colegas, ainda mais envergonhado, o chefe volta à carga:
- Mas e aquele chapeuzinho ? O famoso chapeuzinho vermelho ? Para registro das nossas câmeras...
- Ih, lavou tanto que encolheu. Virou pegador de panela. Não é nem mais vermelho, já tá é meio marrom...
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quarta-feira, 2 de abril de 2008

geração de empregos

Parece que o político tinha uma amante. A mulher soube e contratou um matador prá acabar com a amante do marido. Então, ele contratou um guarda-costas prá defender sua amante do matador. Sabendo disso, a mulher pagou a uma garota de programa para distrair o guarda-costas e permitir a ação do matador. Dizem que, ao se inteirar, o marido arranjou um ator que, vestido de turista, fará uma boa oferta à garota para darem umas voltas.
Quero saber até onde vai essa "cadeia produtiva". A
guardo ansiosa abrirem vaga para escritores.

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tempo de sinhá

Estamos em Araruna, no ano de 1885, e agora eu trabalho em uma loja de doces. No calor desta manhã tediosa, daqui do balcão posso ver a mulher branca que sai da igreja, atravessa a rua de paralelepípedos em direção à praça da cidade. A longa saia rodada, cheia de rendas, cobre uma falsa “derriére”, anáguas, meias, botinhas de camurça. Na unidade superior, a mantilha nos ombros complementa um casaquinho da mesma cor da saia. Embaixo do casaquinho uma blusa de rendas esconde o espartilho que aperta as costelas, fechando os pulmões em uma respiração afogueada. A branca é seguida de perto por sua escrava, que lhe segura a sombrinha, protegendo-a do inclemente sol dos trópicos. A negra de turbante veste apenas panos rústicos enrolados e amarrados no corpo.
O tempo passa devagar. Para o elenco de apoio da novela, um tempo de areia que infinitamente se esvai, quente e lento, sem retorno. Dias inteiros e nada a fazer, a não ser observar a movimentação na cidade cenográfica.
De repente toca meu celular, atendo e é alguém que se exalta porque não sabe apagar uma linha de tabela no computador. Exige, vocifera. Estamos no Rio, ano 2006. Meus pulmões rapidamente se fecham e é com respiração afogueada que grito:
- Tempo !
Escrava branca ? Ouço a linha, sinto a vida desalinhada. Não tenho tempo, mas que tempo é este ? Não entendo como é possível um ser humano achar que pode ser dono e senhor de um outro igual.
Não, não sou escrava. Desligo.
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terça-feira, 1 de abril de 2008

sabedoria

Como quem acaricia a cabeça da avó
Da minha janela privilegiada
Toco as folhas mais altas
De uma senhora mangueira.
Amigas há pouco tempo
Comadres recentes
Acompanhei duas gerações
Desde que somos vizinhas
Dois verões.
Depois das flores
Adoro as manguinhas-neném
Minha janela vira creche de azeitonas
Que posso pegar com a mão.
Adolescentes
Mais evasivas, distantes
Adultas
O peso aproxima do chão
Mangas urbanas
Suculentas
Saciam vizinhos e meninos de rua.
Hoje acordei observando
Nem flores nem frutos
Silêncio
Tronco e cabeleira de folhas.
Feliz
Ela relembra mangas roubadas no pé
Vida tão desejada
Serena
Cicatriza mangas no chão apodrecidas
Vida perdida.
Inquestionável natureza.
Inarredável na sua certeza
Poderosa
Guarda forças
Aguarda o verão.
Ah, como eu queria ser mangueira !


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sábado, 29 de março de 2008

esenoiam

Quando a mulher ao meu lado tirou o “Código da Vinci” da bolsa, eu não resisti:
- Ai, eu li esse livro, a gente não consegue desgrudar, é uma loucura, fica lendo até as 5 da manhã !
Rimos juntas e começamos a conversar. E foi me contando que desvendou alguns dos enigmas logo que viu, e que achou estranho os personagens demorarem tantas páginas até descobrirem. Reconheceu que tinha vantagem por ter estudado um pouco de criptografia.
- Ah, assim não vale !
Mas também por um acidente que a fez ficar 4 anos com a mão direita paralisada. Daí começara a escrever com a esquerda, e percebeu que com esta mão era mais fácil escrever ao contrário, “subindo no papel”. Então também foi aprendendo a ler assim. Às vezes no supermercado alguém estranhava aquela lista esquisita, mas os amigos já sabiam, quando era bilhete, recado, que deviam virar o papel e ler contra a luz. Orgulhosíssima, lembra quando o médico afirmou que ela estava em boa companhia, já que Leonardo da Vinci também escrevia assim, espelhado. Então, já esperava por isso no livro...
Criei coragem e perguntei, interrompendo:
- O acidente foi de carro?
Levou um susto, recuou:
- Não, foi em casa. Doméstico.
Mostrou a mão, com uma bandagem em volta do dedo mindinho. Apesar de várias cirurgias, a cicatriz desse dedo era muito sensível e ela mantinha o curativo para não se machucar ao pegar o livro ou girar a chave na fechadura. Aos poucos foi explicando: no acidente um barbante tinha cortado todos os dedos. O polegar e o médio agora estão ótimos, mas o mindinho... tinha sido decepado. Caiu no chão. Ela teve que pegar porque estava sozinha em casa. O vizinho a levou ao hospital. Não consegui entender como é que uma pessoa destra, sozinha, faz um barbante cortar todos os dedos da mão direita a ponto de meio dedinho cair no chão !
Não sei se foi o meu silêncio ou a minha cara de incredulidade que a fez falar:
- Abrindo um vidro de maionese.
Como ? Minha incredulidade aumentou – onde foi parar o barbante ? Disse que a tampa estava lascada e muito presa.
- Ah!... (depressa, esquece o barbante, pista falsa)... E não processou a maionese?
Eles argumentaram que ao sair da fábrica, não estava lascada, que a culpa era do supermercado. Na ação contra ele, perdera em todas as instâncias, porque argumentaram que ao sair da loja a tampa não estava lascada. E como o acidente foi em casa... E isso que foram 25 minutos entre a compra da maldita maionese e a entrada no hospital. Guardara a notinha do caixa e cópia do prontuário médico. Numa das audiências o advogado do mercado ainda perguntou se ela não tinha um vídeo com o registro do acidente. É boa, colocar uma câmera de vídeo para gravar o momento exato em que se abre um vidro de maionese! Claro, vai que a tampa está com defeito e você perde um dedinho por aí, passa por várias cirurgias e fica com a mão direita paralisada por 4 anos e até aprende a usar a esquerda e a escrever espelhado e decodifica os enigmas do Código Da Vinci !...
- Então, a senhora nunca mais entrou naquele supermercado ?
Guardou o livro que mal chegara a abrir.
- No começo, não, mas aos poucos a gente acaba voltando, é na frente da minha casa. Mas maionese...não passo perto. Faço um desvio prá não passar perto da gôndola, olhar aqueles vidros...
Um pouco alterada, pede licença, tem que descer no próximo ponto.
Quanta história naquele corpo tão magrinho, uma vida revirada do avesso por um vidro de maionese...
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sexta-feira, 28 de março de 2008

massa

O moço ama a moça
A moça dá o passo
O moço amassa a moça
A moça ama o moço
Mas o moço passa.
A moça na fossa
É uma poça, uma sopa.
Eu se fosse a moça
Saía dessa:
Nem reza nem missa
Promessa ou preguiça.
Eu se fosse a moça
Mais que depressa
Ía à praça
Fazia quermesse
Escrevia uma peça
Encenava prá massa.
Ora essa !


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rixa de lagartixa ?

Andava triste e fui tomar um banho – lavar o corpo não lava a alma, mas às vezes ajuda a refrescar umas idéias. De qualquer forma, pedi a Deus que me mandasse algo de bom. Automaticamente, olhei prá cima - bobagem, não dizem é que Deus está em toda parte ? Mas no caso, olhar para cima me fez encarar o forro do banheiro e, pior, uma lagartixa que por lá passeava esnobando a gravidade. A bicha, quando ouviu o meu grito, despencou lá do alto, por pouco não caiu em cima de mim - nojo ! - e veio parar no box junto comigo. As duas nuas, as duas em pânico, atrapalhadas fugindo uma da outra e da água do chuveiro que jorrava. Ela, não sei, mas eu chorava de medo e ria de mim, atestando mais uma vez que, se Deus existe, é um grandessíssimo sacana, e devia estar se embolando de rir com as duas figuras encharcadas naquele ringue escorregadio:
- Está triste, filhinha ? Toma uma amiguinha prá você se alegrar ! Há há há...
Ela não conseguia sair do box nem escalar as paredes molhadas de azulejos. Tive que sair e tentar tirá-la com a bucha, o tapetinho, o vidro de shampoo, a escovinha... Afinal, depois de muita relutância, concedeu-me o grande favor de entrar dentro de um balde, onde ficou quieta, exausta, até eu terminar o banho. Então, já mais tranqüila, deitei o balde na área e deixei que ela reassumisse a nobre função de papa-mosquito.
Banho juntas, vá lá. Foi engraçado, até agradeço. Agora, cada uma seguindo o seu caminho.
Chispa !
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terça-feira, 25 de março de 2008

tempo

Vinha eu muito contentinha porque afinal, tinha conseguido colocar este blog no ar. A quantidade de informação na rede é tanta que o Google demorou umas 3 semanas prá perceber que o palavraponte existia.
Muito bem.
Subia tranquilamente a ladeira, comemorando, quase cantando, quando dei de cara com ela. Um susto. Logo hoje. A gente demora prá acreditar no que está vendo. Pois lá estava, na minha frente, a poucos metros da porta de casa. Me lembrei das aulas de física: problemas sempre perguntavam em que instante, ou qual a velocidade, ou em quanto tempo, ou em que posição... E a pergunta agora era: quanto tempo uma bala perdida demora prá chegar até você ?
Por sorte, estava quieta, deitadinha na calçada. Curiosa, sucateira que sou, eu me abaixo, pego, aperto na mão – é resto de um disparo, calibre 38. Pesa. É de verdade. A morte é de verdade. A guerra um dia passa mais longe, no outro dia, mais perto. Mas ela é diária. Por mais que a gente tente esquecer, tocando a vida, fazendo planos. Ela está lá, ela está aqui, na minha porta, na minha calçada. É só uma questão de tempo.
É transtornada que entro em casa. Ponho a bala de pé, em cima da mesa. Prá quem teria sido dirigida ? Nesta rua ?... Mas então lembro de uns versos que demorei muito a entender: “Não perguntes por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”
Muito bem.
Toca a correr e fazer e escrever e viver tudo o que é preciso, antes que qualquer coisa aconteça, antes que alguma coisa nos impeça. Em todo caso, bala perdida ou não, a vida é só uma questão de tempo.

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guarda-volume

No andar de cima, ao meu lado, o pai vê o filho no cercadinho do andar de baixo, espaço creche de um shopping. Avisa que vai encontrar com a mãe. O filho, uns 6 a 7 anos, começa a ficar nervoso e a tirar a fantasia de leãozinho, diz que vai sair dali, que é para o pai esperar. Começa uma pequena discussão: o pai dizendo que é prá ele ficar mais um pouco, ele, que não, o pai diz que vai buscar um papel com a mãe, e ele:
- Não foge não, pai, pera aí !
O pai diz que é preciso o papel prá sair, o garoto continua tirando a fantasia, até que fica só repetindo:
- Eu vou sair, não foge não, pai !
A discussão continua, um não convence o outro, e então o garoto parece meio hipnotizado, nem olha mais o pai, só olha prá frente, repetindo:
- Não foge não, pai !
Viro rapidamente para o lado, eis que o pai também está meio abobado, para ele a situação parece nova, mas o garoto agora chora. Não, não é verdade, ele continua congelado, repetindo, sou eu que vejo e choro dentro dos seus olhos porque o cenário é diferente, o figurino nem sempre é de leãozinho, mas é sempre a mesma cena, todo dia ele nunca alcança o pai que foge. Entra uma babá tentando convencer o garoto a ficar, mas ele já está correndo escada acima semi-desesperado porque não vê o pai, que deu a volta na pilastra prá encontrar o menino. Afinal se vêem no mesmo nível, não vejo a cara do garoto mas o pai ri. Não sei se ri do desespero do filho, do engano da criança pensando que ele tinha ido embora, ou de alegria por afinal terem se encontrado.
Não acompanho mais a história, em todo caso será mesmo preciso um papel para tirar o menino dali, é como um guarda-volume, se você não entregar o cartão com o número, não devolvem a sua bolsa.
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aguaceiro

A mãe entra no banheiro com o filho de uns 4 ou 5 anos, ajuda o garoto a tirar a calça e quando vê...
- Ai, Fernando, mas você já fez ?
Ele não responde.
- Você fez na calça, Fernando ? Por que é que você não esperou ?
Silêncio.
- Você tinha que ter segurado até a gente chegar aqui ! Por que é que você não avisou antes ? Ô, meu deus !...
E o Fernando nada.
- Olha só, a calça toda molhada.
A mãe deixa o Fê no reservado, a porta entreaberta, pega umas tantas toalhas de papel para enxugar a calça do menino que, preocupado, pergunta:
- E agora, mãe ? E agora ?
Pausa. Fico curiosíssima prá saber o que vai acontecer agora. A respiração, o mundo, a vida, tudo depende da resposta dela. Assumo meu lugar de observadora: eu e o Fê, desconhecidos, unidos pela expectativa da terrível tempestade que se avizinha, bronca da grossa, nos encaramos pela primeira vez. Afinal, parece milagre um vento que leva prá nunca aquelas nuvens tão pesadas, pois é prá mim que ele sorri quando ela responde:
- Agora já era, agora a calça ficou molhada !
Saem os dois de mãos dadas.
Logo depois já estão o Fê e sua calça molhada brincando com outro garoto...

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quarta-feira, 19 de março de 2008

a vida como ela quer

Angélica começou a trabalhar na minha casa porque tinha terminado seu casamento de 23 anos. O casal tinha uma cantina onde, além de dona, ela era caixa. Como tinham um ajudante, ainda por cima ela era patroa. Toda semana ía ao salão arrumar cabelos e unhas, vivia bem. Separada, entre a cantina e a casa, como toda mulher com filho, escolheu ter onde morar. Viveu de ajudas e restos por 3 meses. Quando não deu mais, engoliu o orgulho e foi trabalhar de doméstica.
Perguntada sobre a separação, contou constrangida que tinha se envolvido com outro, bem mais novo, sabe como é, a rotina depois de 23 anos, etc. Resulta que foi vista em uma festa com o rapaz, o marido ficou sabendo e a brincadeira terminou. Algumas vezes me falou de tentativas de reconciliação da parte dele, sempre rejeitadas por ela.
Pois bem. Na quinta-feira passada ela liga dizendo que não pode vir. Ontem cheguei do trabalho e dou de cara com uma Angélica-elefante: a face direita completamente deformada e um hematoma roxo no olho. Eu espantada, ela dando risada. Que está se encontrando escondida com o ex-marido.
- Bem, e daí ? Ele bate e você gosta, é isso ?
- Não, não foi ele, foi a mulher dele.
- Ah, ele já tem uma mulher ?
- Pois então, agora eu sou amante dele, do meu ex-marido.
- Mas então por que vocês não voltam?
- Ah, nem eu quero, agora que eu tô me vingando !
- Você está se vingando dele, namorando ele ? Não entendi, mas então o soco ...
- Eu não disse prá você que eu sofri muito ?
- Sim, e ...?
- Pois agora ela vai ver o que é bom, tirar o marido das outras...
- Mas, peraí !
- É, ele me deixou prá ficar com ela, 23 anos casados, agora ela tá louca porque vê que amor é mais embaixo...
- Ah, é ? Mas você não disse que tinha arranjado um namorado ?
- Isso foi depois, tapa-buraco !
Diabólica. Eu, pasma, tentando juntar lé-com-cré. Ela e sua cara deformada rindo a bandeiras despregadas, aquele olho roxo motivo de orgulho, que ela desfila pelas vielas da Rocinha para que todos saibam. Jurada de morte, Angélica refaz sua auto-estima. Rio também, aconselho cuidados: não perca a cabeça, não vá perder a vida... E ela, com sorriso quase angelical:
- Fique tranqüila, que a senhora só perde a empregada se for prá ela voltar a ser patroa.


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segunda-feira, 17 de março de 2008

noite

Escrever
Só depois das dez:
É coisa para gente grande !
Eu só fico assim, adulta
Tarde
À noite
Oculta.
No escuro
No silêncio
Quando cai
O que está suspenso
A vida toda repenso
Deixo algumas lágrimas no lenço
E também caio em mim
Até que me calo, por fim.
Só então deixo sair
O que o dia plantou.
Escrevo
Como quem colhe uma flor.


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programa duplo, perguntas mil

Entram no ônibus uma loura oxigenada e uma mulata, mais ou menos da mesma idade, uns 25 a 30 anos. São umas 4h da tarde, um calor infernal, as duas com roupas extremamente sensuais, apertadíssimas, como quem sai para a noite. Ao passar na roleta, a que está na frente se atrapalha, procura o cartão na bolsa, a loura paga e a roleta solta. Então a morena passa e vai sentar, mas agora é a outra que fica presa. A mulata volta e passa o cartão, afinal estão juntas mas cada uma paga a sua. As duas sentam em bancos diferentes, uma delas na minha frente. A mulata explica: o cartão é da filha, que está de férias. Falam alguma coisa curta sobre o trajeto do ônibus. Depois, silêncio completo.
Parece que dentro da morena existe uma raiva contida, seus gestos rápidos e diretos, bolsa, carteira, cartão, impacientes, tentam mostrar quem é que manda ali. Alguém sai no banco atrás dela e então a loura senta-se aí, separada de mim pelo corredor. Ela escorrega no banco até quase se deitar, parece exausta, parece que chora. Sim, ela está tentando se conter mas não consegue, ela chora e o rosto inchado fica logo vermelho. Semi-deitada, ela tenta se esconder, cobre-se com o braço, até que se levanta e puxa a campainha. Dá um rápido toque no ombro da morena, que nem se vira, apenas pega e aperta a mão da outra e assim, uma sentada e a outra de pé, quase de costas uma para a outra, elas se cumprimentam. Elas não são amigas. Ou elas têm vergonha uma da outra.
Invento: foram parceiras, provavelmente pela primeira vez. Algo muito difícil, pesado, doloroso, aconteceu entre elas – um programa ? Talvez com turistas, com executivos ? A fantasia dos homens com uma loura e uma morena ? A loura oxigenada sai do ônibus com a alma completamente destroçada - o que será que elas viveram juntas, que humilhações ? Será que conversam sobre isso com alguém ? Será que alguém sabe ? A morena, mais dura ou mais experiente, segura a onda, aperta os lábios e finge que é dona de seu nariz. Quantos programas assim ela já fez na vida ? Quantos ela precisa fazer toda semana para sustentar a filha na escola ? Quanto tempo mais ela agüenta ?
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lavando batom

Nada podia haver de mais humilhante para ela do que ter que lavar as manchas de batom nas camisas do marido. Com ódio esfregava, esfregava ferindo os dedos com sua impotência. Só faltava um dia ter que lavar os lençóis sujos de amor alheio ! Amor de alguma forma vizinho ao seu. Como a mesma parede compartilhada por apartamentos, assim estava seu marido. Usufruindo dela segurança, bem-estar, comida e roupa lavada, cama nem tanto. Usufruindo da outra os prazeres da vida, a juventude, o decompromisso.
Não conseguia entender como foi que aquilo aconteceu. Ela também fora jovem, quando começaram não havia compromisso e eles dançavam, riam, bebiam. Depois, o dinheiro curto para o aluguel, as tarefas da casa. As tarefas !
Pensando nisso, perdeu a hora, atrasou o jantar. Quando ele chegou com cheiro de cerveja e mais uma camisa manchada no colarinho, ela carinhosamente disse:
- Você chegou cedo, amor, eu ainda não arrumei a mala.
Ele largou-se no sofá, sem a menor atenção; ela sempre dizia isso. Ela, em polvorosa, era a mesa que não arrumara, por que dissera a mala ?
Perturbada, atordoada, sem saber o que fazer, foi para a cozinha. Olhou o feijão no fogo, o arroz, a carne crua na tábua esperando a frigideira. Desolada olhou a pia, as paredes, os talheres. Uma a uma, as colheres de pau, o espremedor de alho, o de batata, a faca de pão, a faca grande com que esquartejava o frango. As latas de mantimentos na prateleira. Olhou tudo com estranheza, distante. Não precisava arrumar a mala.
Em silêncio saiu da cozinha, passou pela sala onde já o marido via futebol na TV, abriu a porta da rua e saiu. Sentiu alguma pena imaginando tanto feijão queimado.
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sábado, 15 de março de 2008

tpm

Porque eu queria que você
Lesse os meus pensamentos
Percebesse os meus movimentos
Ouvisse os meus lamentos
Por isso escrevo.
Mentira.
Escrevo
Porque tudo em mim
É forte demais
Qualquer coisa é tudo.
Ou não é.
Indiferença jamais.
Qualquer vento me faz sangrar
Me faz delirar
Por isso escrevo
Tentando ordenar.
Mentira.
Escrevo porque inventei.
Inventei de rasgar
Os porões, as catacumbas, a dor
Alma e útero de ser mulher.
Nada disso
Só escrevo
Porque Deus quer.


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palavra

Um homem sem palavra
Vale tanto
Quanto a sua palavra.

Um homem de palavra
Vale mais
Que qualquer palavra.

Palavra de poeta !

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diet

No Mac’s peço licença a uma senhora para sentar na cadeira à sua frente. Mãe obesa sentada com dois filhos. O papel que forra a bandeja traz as calorias gastas em diferentes atividades. Um dos meninos lê alto:
- Correr, 180 calorias, andar devagar, 40 calorias.
E inventa:
- Peidar, 100 calorias.
Ri, antes de ser atingido pelo safanão daquele braço gordo, pesado:
- Cala a boca, nojento !
A mãe depois sorri sem graça prá mim. Pede a uma funcionária uma cópia limpa do papel. Quer guardar a lista, que é para começar dieta no dia seguinte, faz questão de me explicar. Diz então que eu não preciso, que sorte a minha, poder comer de tudo, elogia meu corpo “de sereia”. Digo que é melhor esquecer isso de dietas, que bobagem, e tentar ser feliz de outro jeito. Imagino: rindo com o filho, por exemplo. Invento: rir, 250 calorias.
Não, não falo nada. Eu não sou obesa. Também não tenho filhos.
Em eterna dificuldade financeira, o “corpinho de sereia” aprendeu a respeitar dietas alheias quando um amigo rico admirava a lua cheia:
- Quem é que precisa de dinheiro com uma lua dessas?
Só pensa assim quem não precisa de dinheiro algum.
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da natureza

Dia desses peguei um táxi, coisa rara, em geral me movo a pé, de bicicleta, ônibus ou carro. Nesse dia, atrasada, irritada, triste, provavelmente uma discussão com o então marido. Discutia-se mais que tudo. Mas tudo o que eu queria naquele momento era paz, silêncio, e que o táxi corresse a tempo para a aula. Trânsito super engarrafado, o motorista começa a falar. Motorista de táxi é assim...
Ou porque eu não respondia, ou porque viu minha cara pelo retrovisor, lá pelas tantas o camarada diz:
- Eu não entendo gente que fica de mau-humor. Tem gente que já acorda de mau-humor, com a cara amarrada.
Silêncio. Eu vou lá dar corda ? Mas o camarada não se intimidou.
- Deve ter coisas muito ruins na vida dessa pessoa, não é ? A gente é que não sabe...
Eu calada.
- Acho que não é da natureza ...
Aí não resisti:
- Da natureza ? Como, assim ?
E ele:
- É, da natureza. Natural é o passarinho acordar cantando pro sol, contente de estar vivo. Não tem passarinho de mau-humor.
E o meu mau-humor só aumentando...
- Tô falando de passarinho solto, na natureza. Gente devia ser assim, eu acho, acordar cantando.
Calei. Profundamente. A sabedoria ali, naquele táxi.
- O senhor tem razão.
E tive que me explicar:
- É que às vezes tem passarinho preso...
Foi ele que encerrou a conversa:
- Ah, então tem que soltar !
Entendi. Fui cuidar da minha libertação.

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zezé

...e tem aquela que de tanto medo (de quem ?) tenta se manter sempre ocupada, a agenda sempre cheia de compromissos, tarefas, obrigações, horários, ainda que compromissos sejam até encontros, almoços, jantares, chazinhos, de qualquer forma eles são a garantia (são ?) de não precisar olhar a solidão de não ter que mergulhar nem olhar o espelho nem pensar o passado o presente o futuro, não digo quanto aos compromissos mas o que foi feito, o que ela mesma fez (e faz ?) com a sua vida.
e então no Natal ela descobre que pode se ocupar ainda mais, toca a comprar presentes que é muita gente, é preciso lembrar de todos afinal são eles (quem ?) são os que a ajudam a não (se) ver. Bate pernas de dia à tarde até de noite, sempre que pode procurando comparando pechinchando este para o tio este para o sobrinho aquele para o ... como é mesmo o nome? Não interessa, o do escritório, o que falta ? Sim, sempre falta alguém tem que faltar, não saberia o que fazer se a lista fosse assim tão curta. Mas em seguida feliz descobre que não é preciso ter medo, há muito o que fazer, e toca a empacotar, embrulhar, enfeitar, identificar um por um qual é para quem. Radiante conta e vê orgulhosa que são 430 pacotes, pacotinhos, pacotões, sente-se rodeada de amigos e em nenhum momento se pergunta onde eles estão.
E ela, ela está logo ali, está aqui, e se não são lojas são processos são aulas são matérias para o jornal artigos conferências e se não presentes (nem sempre é Natal) são reformas na casa são cortinas pisos azuleijos ou roupa para lavar passar costurar comidas por fazer quadros a emoldurar louça para lavar até crianças é preciso levar para passear tudo vale desde que não se possa parar.
Mas tudo cansa nada satisfaz nunca sempre ela sente falta do outro ainda junto com todo o medo e ela sempre tenta e não sabe se é busca ou perdição procura sempre tentando não achar que o achar é que é perigoso. Apaixona-se perdidamente pelo coroa ou garotão o cara casado o que é gay (não sabia ?!) o doente ou com 5 filhos o desempregado o que mora fora até o padre (Meu Deus !) tudo vale desde que não se possa parar. Desde que não se encontre o que tanto se quer. E no meio dessa sabo - sacanagem são tantos desencontros que chega a fazer mais uma lista foram 54 amantes e em nenhum momento se pergunta onde eles estão.
Escrevo porque essa mulher passou por mim. Está aqui, está logo ali, quem é que nunca viu ?
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quinta-feira, 13 de março de 2008

moradia definitiva

Procurava casa para comprar. Como já me mudei infinitas vezes, queria que essa fosse minha última mudança. A corretora oferece um ótimo apartamento na Rua Gal. Polidoro...
- Ao lado do cemitério ?
- É, mas é simples como você gosta.
Sinto a mordida irônica. Os corretores não são mais os mesmos. Ok. Devolvo na mesma linha:
- E com vista panorâmica pros mortos ?
- Ãhn...Nnããão, do quarto só dá prá ver 4 túmulos.
Não pude deixar de rir. A danada tinha senso de humor.
- O que é que tem ? Todo mundo não vai morrer mesmo ?
- É, mas não precisa ficar lembrando o tempo todo !
Depois da empatia e do amor pelo eufemismo, uma das principais características do bom corretor é a persistência. Pois ela ainda filosofa:
- Mas a gente não está morrendo o tempo todo ? Isso já estava claro desde o começo, ninguém está enganando ninguém !
Verdade. Os corretores não são mais os mesmos.
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