terça-feira, 12 de maio de 2009

as meninas, não ! (monólogo teatral)

(Para a plateia) Ah, cês estão aí. Bom, que cês estão aqui. Nem sei o que ia ser de mim sem ocês aqui. Tão quietinhas. Tão quentinhas. Cês tão quentinhas ? Ficam só olhando a gente... essa carinha inocente. Ó os olhinhos esbugalhados da Marelinda. Assustada, desde que nasceu... E a Fininha ? Vive pelos cantos. Tá sempre bisbilhotando alguma coisa. E ocê, Angola, já teve filhote, já ? E cadê o angolinho, que eu não tô vendo ? Ah, já dormiu. Bom. A Branquela é que não larga, vive com aquele frangote debaixo da asa. Ói, dona Ruiva, e ocê ? Bem te peguei outro dia passando por baixo da cerca, foi ou não foi ? Eu bem te vi. Tô acompanhando, pensa que não ? Aquele é um garnizé, vê lá.
Ah, o Zé... Pois outro dia veio aqui a mãe do Zé. Ocê lembra, Pintada ? Ui, que frio na espinha, que vade retro de mau agouro. Aquilo é o demo. O que é que queria... almoçar, ora essa. Tá me olhando... Claro que não, nem morta, que eu só vivo é por causa d´ocês, como é que eu ía poder ? Ô louco ! A vida... assim que é: ocê pensa em nada, vai vivendo, um dia vai, a mão te leva. Ocê nem vê, mal sabe. Tão rápido, instantinho de nada e o que era inda agora, já não é mais, vai-se embora num suspiro...Ocês aproveita, vai aproveitando, que um dia...
Ahh, pois aquele dia, a danada bem veio me espetar. Arre ! Que jeito que eu dei ? Lembra, não ? Questão de vida ou morte. Fui pegando: dá os ovos todo, gente, dá aqui, passa. O que cê pôs ainda agorinha, passa prá cá também. Desapega. Ou quer virar cabidela ? Ah, vai entregando, desespero, era o ovo ou a panela. Saí lá com o avental cheio, gritei bem que era pro Zé ouvir também: ói, dona sogra, quer comer porco, não ? quer comer linguiça, não ? Pois vai comer uma baita omelete. É isso mesmo. Que eu não sou assassina, e as minhas meninas ninguém põe na panela ! Ou me põe junto, quero ver !
Pois foi assim. Bom, que cês tão aqui.


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segunda-feira, 11 de maio de 2009

camelôs e camaleões (artigo publicado no JB em 03/05/09

O espaço para a circulação dos pedestres foi ampliado, algumas barracas sumiram. A moça que vendia biscoitos a granel, numa tenda grande, agora tem um banquinho onde coloca saquinhos de 100g de biscoitos já pesados. O que antes era um balcão largo onde se vendia água de coco, agora é uma mesinha alta onde fica a serpentina - o isopor com gelo é escondido atrás da árvore, um pouco mais longe. A barraca de frutas foi substituída por um aramado com capas de DVDs e programas piratas de computador. A troca só faz sentido na lógica do “rapa”: mais fácil correr e fugir, mais leves, não perecíveis. Além disso, os discos propriamente ditos estão sempre a salvo.
A transformação lembrou-me Darwin e sua teoria: sobrevivem os que melhor se adaptam a mudanças...
Na esquina perto de casa, essas tinham sido, até ontem, as consequências visíveis do choque de ordem desencadeado pela prefeitura. Hoje, menos de 4 meses depois do seu início, a barraca de frutas está de volta.
Não há dúvida de que o espaço público precisa ser ordenado: é imperativo o cumprimento das leis e o respeito às normas de convivência urbana. Porém, no que se refere ao comércio ilegal, atitudes repressivas, apenas, não resolvem. Não adianta afirmar a ilegalidade e caçar os criminosos, sem oferecer nenhuma alternativa para o sustento legal das famílias envolvidas. A gestão anterior começou e terminou levando a guarda municipal a tristes e vergonhosas batalhas que não trouxeram avanço algum. É claro que nenhuma prefeitura pode dispor de efetivo suficiente para fiscalizar permanentemente todas as ruas, de todos os bairros. Além disso, a crise econômica e o desemprego devem ampliar o número de pessoas que buscam a sobrevivência desse modo.
Questão complexa não tem soluções simples. Se quiser de fato resolver o problema, a equipe deste governo terá que dialogar com associações de moradores, associações de lojistas e com os próprios ambulantes, para conseguir encontrar, dentro da lei, as formas mais criativas, mais benéficas para a cidade e menos lesivas para as partes envolvidas. O dado positivo é que a prefeitura parece dar sinais de abertura: há no ar uma sugestão para a transformação dos comerciantes em microempresários, o que ainda merece estudos, mas a idéia em si já traz um olhar novo, que propicia a inclusão. Também a reordenação do Largo da Carioca, no Centro, mantendo uma área onde o exercício legal dos cadastrados é possível, foi uma iniciativa diferente da repressão pura e simples. No entanto, é preciso que a definição de espaços tenha por base acordos que possam efetivamente ser respeitados. Do contrário, a infinita criatividade dos camelôs cariocas, estimulada pela necessidade de sobrevivência, poderá ser capaz de driblar todos os planos.
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queda

Cheia de decisão, tomou um banho caprichado, escolheu um de seus melhores vestidos, arrumou-se toda e lá foi ela, toda animada, rumo ao centro da cidade. Perto da Candelária desceu do ônibus. Viu que o sinal para os pedestres já piscava, mas tinha pressa, acreditava que aquele era o grande dia, afinal, chegara o grande momento. Tudo ia mudar, sim, daquele dia em diante. Resolveu correr. Não deu três passos e caiu estatelada em plena avenida Presidente Vargas. Um tombo pra ninguém botar defeito: mergulhou de cara no asfalto. Uma queda em público, em alta velocidade, sem disfarce possível. Deitada no meio da rua, pensava na bolsa, na saia, nas sandálias, na vergonha.
Então o sinal abriu, os motores bufaram acelerados.
Algumas pessoas se aproximaram, entre penalizadas e curiosas: “Que loucura, querer atravessar assim”, “Ai, coitada, está sangrando”, “Por aqui, senhora, apoie aqui”, “Rápido, senhora, levante-se, os carros !”.
Machucou o rosto, as mãos, arranhou os braços e as pernas, abriu uma ferida em cada joelho. Ficou imunda, horrível. Mas o que mais a feriu, o que mais fundo lhe doeu no coração, foi ser chamada de “senhora”.
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