sexta-feira, 20 de maio de 2011

sobre cannes e von triers...


A rede social facebook, da qual participo, entrou na discussão sobre as declarações de Lars Von Triers. Interessantíssima, aliás, porque nos coloca frente a questões complexas e dilemas não totalmente resolvidos. Defendemos a liberdade de expressão doa a quem doer? O artista tem direito a falar o que lhe der na telha? Mas ele não é um cidadão como qualquer outro? Mas e se o que ele fez foi apenas uma piada infeliz? Sim, mas e daí? Deve ser expulso de Cannes? Mas e sua obra, não? Artista e obra são separáveis ou não?
Desafiante, nada trivial. Deu vontade de pensar um pouco.
Antes de mais nada, devo dizer que ADORO a obra dele. Mesmo. Acho instigante, inteligente, move com regiões abissais do ser humano e sempre me faz pensar.
Mas nesse momento, lembrei de um ditado antigo: “quem fala o que quer, ouve o que não quer”. Embora eu seja contra a censura, principalmente quando se trata de obras de arte, as declarações do cineasta não faziam parte de sua criação artística. Ele falava como cidadão. E, como cidadão, artista, deputado, médico, desempregado, policial ou gari, é tudo igual – ou devia ser, né? É isso que se propõe em uma democracia...
Aí, mesmo que a gente defenda a liberdade de expressão, também há limites – e eu concordo que tem que haver - para as loucuras que saem pela boca de uma pessoa. Porque elas atingem outra. Tem a famosa frase: “A liberdade de um termina onde começa o direito de outro”. Então, se a pessoa não sabe ou não consegue se controlar, não tem esses freios internos, não tem a delicadeza de perceber que está ferindo outras pessoas – e, infelizmente, muitos artistas têm enorme dificuldade para ver o outro – a sociedade vai ter que dar um jeito de colocar esses limites. Porque todo ato tem suas consequências, a gente também não pode ser ingênua de sair xingando os outros e achar que ninguém vai se importar (até porque, na maioria das vezes, a pessoa quer mais é que os outros se importem, de um jeito ou de outro!). Se formos pensar bem, a total liberdade de expressão na verdade não existe na vida em sociedade, porque o sujeito que sair falando o que lhe der na veneta algum dia poderá ser processado por calúnia, difamação, etc. (Isso se antes não levar um tapa, um soco, um tiro...)
Alguém pode dizer: “Ora, mas ele não xingou ninguém, apenas fez uma piada de maugosto dizendo-se simpático a Hitler!”. Então acho que também seria ingenuidade vermos as coisas assim. Primeiro, se pensarmos nessa forma de humor: se foi uma piada, foi em forma de ironia, de deboche, que é algo muito diferente de tornar as pessoas mais alegres, com intenção de confraternizar e fazer outras pessoas rirem junto conosco sem fazer mal algum, sem reduzir ninguém. A ironia, o deboche, é um modo disfarçado de ferir, de espicaçar o outro. Mesmo inconsciente, houve uma intenção nada agradável. Depois, quando se fala em simpatia por ninguém menos que Hitler – Hitler! -  não dá pra esquecer que o cara foi responsável por um dos períodos de maior barbárie da nossa história, pela morte de milhões de pessoas e que isso causou feridas até hoje muito fundas e vivas. Tanto é que até hoje é tema de livros, filmes, peças, etc. Então podemos entender que esse deboche é dirigido às pessoas que mais sofreram com o holocausto, e podemos entender que essas pessoas recebam as declarações de Von Triers como um xingamento. Porque é quase como se ele dissesse que não só não se importa com o sofrimento delas, como considera que foi correto todo o sofrimento que lhes foi imposto.
Aí, haverá consequências, certamente. Não que eu as defenda. Estou apenas tentando entender e refletir sobre tudo isso. Porque, teoricamente, talvez fosse bom se a pessoa um dia pudesse falar uma insanidade dessas e ninguém se importasse (insanidade, considero essa declaração como um lapso de demência, mesmo). Porque de tão bárbara, todos teriam certeza de que é loucura e, portanto, teriam como reação apenas um muxoxo e dariam de ombros. Não valeria a pena sequer gastar energia com isso. A não reação também seria sinal claro para todos de que já não nos importamos, porque já mal lembramos quem é Hitler, porque há muito que as feridas já teriam cicatrizado. Um dia.
Por outro lado, seria também um péssimo sinal chegarmos um dia à situação em que as palavras de um dos nossos maiores cineastas não têm nenhuma importância. Ou seria sinal de que as palavras, em geral, não mais afetam as pessoas. Que as pessoas definitivamente não se importam umas com as outras, que as pessoas estão definitivamente surdas umas às outras.
Não, ainda não estamos lá - ou nunca estaremos. Sei lá.
Em todo caso, gosto sempre de pensar que a arte vale mais do que o artista. E como arte e artista não são a mesma coisa, isso quer dizer que, separáveis ou não, de modo geral a melhor parte do artista são as suas obras. Daí que posso não concordar com o fato de Cannes ter expulsado Von Triers, mas aplaudo a manutenção de sua “Melancolia” no festival. Estou louca pra ver.
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3 comentários:

Guga disse...

gostei Veronica , vi no FB o link no Isaac e é isso aí ,
a pessoa pode falar o que quiser mas tem que segurar a onda depois ,
bjs

Ana Portoalegre disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
caê disse...

Gostei muito da sua fala,mostra reflexão e não ódio pelo artísta. Não se pode sair por aí dizendo tudo que se pensa, sem sofrer as consequências, mas querer linchar um artísta como estão tentando fazer se assemelha muito às práticas nazistas. Eu também espero poder ver Melancolia,afinal o cinema de von Trier é muito original para ser renegado.