quarta-feira, 4 de maio de 2011

vida ou arte ?

Ensaiava em casa uma cena com uma colega. Então ouvimos a mulher aos gritos:
- Mentiroso, você é um canalha! Mentira!
Moro no térreo, com uma pequena diferença de altura que faz da minha janela um camarote para a rua. Dali, meio escondidas pela cortina, assistimos a cena, muito melhor do que a nossa: a mulher brigava em altos brados com o namorado, amante ou algo assim, exatamente na frente do meu prédio. Encostado na mureta, o culpado não falava nada, só resistia aos impropérios, safanões e tabefes que ela prodigalizava.  
- Escroto, você foi um covarde. Você não teve nem coragem de...e você não fala nada, fica aí...
E soltava um tapão. Ele sentia a investida, o corpo oscilava um pouco, como um lutador de boxe, mas como joão-bobo voltava logo ao eixo, para em seguida repetir o balanço com o novo ataque:
- Freguesa...que freguesa, o quê! Levou ela aonde? Eu não sou palhaça!
E voou outra bofetada. Só então percebemos o táxi parado logo acima. Olhamos uma para a outra, entendendo. Aquilo era de verdade. Não era teatro, os dois estavam muito transtornados, vivendo intensamente tudo aquilo. Era o aqui e agora. Nossa curiosidade, enorme; o medo de sermos vistas, completamente egoísta: já não estávamos preocupadas com o constrangimento deles, mas por nada no mundo queríamos interferir e correr o risco de perder o desenrolar da cena.
- Podre. Podre, mesmo. Foi fazer programa com granfina. Um merda!
E bateu tanto que ele se afastou um pouco. Ainda batendo, ela foi atrás, de modo que a cena se deslocou um metro ladeira abaixo e a plateia, escondida, teve que deslizar rapidamente alguns móveis para acomodar a visão.
- Podre, mesmo. Michê! Você virou michê de bacana.
Aí ela inovou: cuspiu nele. Então houve uma pausa. Um silêncio. Os dois sentiram que tinham chegado a um novo patamar.
Depois de um tempo, ele limpou o rosto. Então, em outro tom de voz, ela falou:
- Olha o que você fez com a gente... com a nossa história tão bonita. Você estragou tudo.
Em seguida ela virou as costas e foi andando. Logo depois ele entrou no táxi, partiu.
Ficamos estarrecidas. Ela gosta dele. Muito. Eles vão voltar. Ele foi atrás dela. Mas aquela rua não dá mão. Ele faz a volta. Deve ser verdade. Ele não abriu a boca. E cada tapa! Ela tá uma fera. Ela falando da história tão bonita. Como será que...? Achei que ela tava chorando. Por isso foi embora. Pra não chorar na frente dele. Não mostrar que ainda gostava.
E tudo na minha frente, na minha janela. Foi a melhor parte do ensaio.
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Um comentário:

Unknown disse...

A cena estah pronta, Ve!