sábado, 19 de junho de 2010

no trem

de pé tentando ler, o trem chacoalha tanto que embaralha tudo. O cara sentado na minha frente leva uma enorme assadeira no colo, coberta por um pano de prato – fiquei com vergonha de perguntar o que levava ali. Mas ele me conta uma história: um dia vinha com muito sono e acabou e dormindo no banco, encostando-se meio sem querer num cara que também dormia. Sem problemas, estava bom para os dois. Então, em algum momento ele se virou para o outro lado e deve ter aberto o olho. Um outro tipo, muito mal encarado, vira-se e pergunta: “Tá olhando o quê?” Ele nem entende o que se passa, quando o “amigo” encosto assume a sua defesa e diz: “Ele não tá olhando nada, que ele tava bem dormindo aqui”. Começam a discutir, o meu interlocutor no meio da briga sendo a razão dela, a coisa vai esquentando até que a porta do trem se abre numa estação. O novo amigo simplesmente pega o mal-encarado pelo colarinho e o joga na plataforma. O trem fecha as portas e, diante da perplexidade do meu interlocutor, o encosto-defensor afirma: “E tu dorme aí”. Sendo imediatamente obedecido, os dois se encostam novamente e a paz volta a reinar no vagão.
Ouvir essa história foi muito melhor do que ler.
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segunda-feira, 31 de maio de 2010

roteirinho fuleiro

amores cinéfilos, sessão lotada, não conseguem lugar juntos. Pedem a toda uma fila a gentileza de mudar de lugar para poderem sentar juntos. É o início do festival.
compram ingressos com antecedência para vários filmes. No dia da briga, pedem a toda uma fila a gentileza de mudar de lugar para poderem sentar bem longe um do outro.

The end
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domingo, 18 de abril de 2010

trecho da peça "Vida é o quê?"

Rikardo Ãhn... Não é tão simples assim. Tem o aspecto profissional, certo, mas tem o lado econômico. Ninguém vive sem dinheiro.

Maurineide Dinheiro. Ninguém não vive sem dinheiro. E vida é o quê, me diz? É isso? É comprar casa, carro, bicicleta? É ir no shopping comprar mais, é vestido, é bolsa, é sapato? Eu nunca vi tanta coisa na vida. Verdade que aqui tem tudo mais. Só não sei pra quê. Pra quê! Pra quê tanto, se tem só dois pé, pra quê tanto sapato, deus do céu? Nem que fosse centopéia, precisava era de muitas vida, precisava de viver andando o tempo todo pra gastar aquele monte de sapato. E o tanto de roupa? É saia, é blusa, vestido, calça cumprida, calça curta...

Rikardo Short. Quando a calça é curta chama-se short.

Maurineide Cê é besta, então cê pensa que eu não sei o que é que short?

Rikardo Podia ser bermuda.

Maurineide Então, short, bermuda, biquini...

Rikardo Top...

Maurineide Topo nada. É o quê?

Rikardo Top, é uma parte assim, aqui em cima.

Maurineide Ah, tem top, tem. Tô falando, tem de um tudo. Só não tem pra quê. Só compra, compra, compra, pra fingir que tá fazendo alguma coisa, pra fingir que tá vivendo, fingir que não tá morrendo. Inferno. Um inferno, viver assim. Só louco. Tudo louco!

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sexta-feira, 9 de abril de 2010

deslocado

Janete passando roupa.
Tibério: Janete, eu ando meio preocupado...essas camisas aí...de quem são? Essa camisa não é minha, é?
Janete: Mas, Tibério, você não lembra ? Essa camisa é da tua filha.
Tibério: Meu Deus, Janete...era isso que eu suspeitava...
Janete: Suspeitava? (vira a camisa de um lado e de outro) De uma camisa?
Tibério: Da nossa filha...a...a....
Janete: A Debinha, Tibério?
Tibério: Pois é....A Debinha agora só veste umas roupas assim.
Janete: E o que é que tem ? Agora vai por defeito nas roupas da menina?
Tibério: Não, é que...sei lá, não fica um pouco...? Não fica um pouco esquisito, meio parecendo...?
Janete: É moda, moda é assim.
Tibério: E não confunde, não?
Janete: O quê, as camisas?
Tibério: Não, eles, quero dizer...elas... Você não acha que ela fica um pouco parecendo assim, um ... Janete, não tem uma moda mais de mocinha prá nossa filha usar, não?
Janete: Ai, Tibério, mas você não lembra? Essa camisa foi presente de aniversário, foi você mesmo que deu! E ela só usa prá te agradar... que ela achou horrorosa, completamente fora de moda.
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quinta-feira, 8 de abril de 2010

cadê?

A chuvarada da segunda-feira me pegou na hora em que estava saindo de casa – e por que não me liguei no sinal? Logo na esquina da pracinha o táxi na curva deu aquela espraiada de água suja e me molhou inteira...
Na descida na Lagoa-Barra já não se via nada, tanto que errei o ponto e andei muito mais, em plena chuva atravessando verdadeiras lagoas – uma barra, mesmo. Haja persistência – ou teimosia, sei lá. Com o tênis e as meias completamente encharcados, provavelmente alguns peixinhos, assisti aula durante 3 horas. O incrível é que houve aulas e foram boas, viva a PUC (ainda bem, porque eu já me preparava pra rodar a baiana!...).
Mas na volta, santo deus. Eram uma 22:30h, tudo parado na praça do Jóquei, carros atravancados não iam nem pra frente nem pra trás, os que podiam davam ré e pegavam uma contramão pra sair dali de qualquer jeito. Alguém saiu do carro gritando e no primeiro momento parecia que tinha perdido o filho: “Cadê o Eduardo? Cadê o f. da p. do Eduardo Paes?” A gente olhava a confusão e ria, mas a desgraça era muita e fui ficando aflita, até que apareceu uma mulher que vinha a pé desde a Lopes Quintas e ia pro Leblon. Peguei uma “carona” a pé com ela, era ao menos uma companhia pro meu medo de andar sozinha naquela hora na chuva – se já é perigoso normalmente, nesses momentos tudo vira terra de ninguém e salve-se quem puder.
Bem, minha acompanhante era uma empregada doméstica muito simpática, pude chegar na Av. Ataulfo de Paiva e pegar um ônibus 157 pela Lagoa. Fiquei na dúvida, será que a Lagoa também...? Mas era o que tinha, não dá muito pra ficar escolhendo. Bendito 157, levai-me pra casa. Entrei e feliz descobri que tinha um coleguinha do curso. Viemos conversando e lembrei que éramos, mesmo, muito felizes, porque imagina só se você está sozinha no seu carro enfrentando a tormenta, com o risco do carro morrer ou sair boiando, de entrar água dentro ou de cair uma árvore em cima? Hein? Ou se você está de táxi e tudo isso também pode acontecer, mas com o agravante do taxímetro rodando, olha o estresse. E se você desiste e sai do táxi, vai pra onde? E se você continua, no fim tem que pagar aquela fortuna, porque nós ficamos hooooras parados na Lagoa. Bem, agradeci a deus por estar dentro de um ônibus que atravessou incólume todos os alagamentos, e mais uma vez com uma ótima companhia.
Mas aí a pressa de chegar em casa foi o canto da sereia que me trouxe a brilhante ideia de descer no posto do Humaitá e tentar um táxi pelo Túnel Rebouças. “Ô, minha senhora, que Rebouças, o quê, o túnel tá fechado, ninguém tá querendo rodar mais não, arrisca perder o carro...”
Bem, corri atrás de outro ônibus, agora era um lindo 584, normalmente raro porque vem pras bandas do Cosme Velho. E nele atravessei Voluntária outros grandes mares, agora em silêncio que também já era quase meia-noite. Mas ao passarmos pela Real Grandeza não resisti, caí na gargalhada sob o olhar assustado do trocador – quem é essa louca? “Olha só o nome da rua, e olha só a verdadeira lambança que está isso: um rio de lama com um monte de porcaria de plástico boiando, puro esgoto e terra.” Botafogo inteiro era botanojo.
Afinal saltei nas Laranjeiras e já saltitante por entre as muralhas de lama caminhei a Glicério na esperança de algum táxi. Claro que nada. Subi os 112 degraus da minha escadaria e mais a subidinha da ladeira, entrei em casa torcendo pra ter luz – aqui sempre falta... – entrei no banho glorioso e à meia-noite e meia me pendurei no varal. Só depois eu soube, teve gente que virou a noite, teve gente que perdeu casa, teve gente que perdeu gente. Que merda. Cadê o Eduardo e todos os outros?
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terça-feira, 6 de abril de 2010

sacrilégio

Na sala da universidade católica, o acaso faz a tela de projeção encobrir parcialmente a imagem, e quando me dou conta, é engraçado de repente ver só uma parte do crucifixo: vejo as perninhas de Jesus e não me contenho, dou risada em plena aula - é como se o sagrado virasse profano em uma fração de segundo, as coxinhas de mármore branco aparecendo por entre as pregas de uma minúscula túnica drapeada ganham um inusitado tom erótico, quase uma Betty Boop de minissaia fazendo charminho com um pé sobre o outro.
( meu deus, depois dessa o Ratzinger me excomunga, sem falta!!! )
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quarta-feira, 31 de março de 2010

do pó ao pó

Procuro um nome para minha empresa. Remexo em livros, reviro camadas de minha arqueologia, lá está: Irazú. Árida superfície lunar de enorme cratera, vegetação rarefeita, desconhecida, silêncio absoluto. Vejo a foto: ilusão de paz. Um sentido oculto vibra, assustador, imponente, ameaçador. É lá da Costa Rica que vim; de vulcões e terremotos, sísmica, sismada nasci.
Das cinzas da minha infância, o que longe me lembro: quando tinha uns 4 ou 5 anos, o Irazú lançava montanhas de poeira sobre San José. Os garis varriam diariamente a cidade, acumulando miniaturas do vulcão nas esquinas. Os telhados das casas, como tudo o mais, cheios de cinzas, e no fim do dia, as pessoas voltavam para casa com o rosto e as roupas totalmente cinzentas.
Depois, voltei só uma vez, adulta. Visitei a montanha, o vulcão quieto, conversei com a cratera.
Frente ao perigo, é como se ouvisse o som surdo dos tambores - atenção - e a voz ancestral que convive e aceita a violenta erupção: “Podemos prever, podemos avisar. Nunca poderemos evitar”.
Por isso, agora que o caos se aproxima, procuro em mim força e suavidade, procuro em mim a milenar sabedoria de quem ouviu os estrondos, de quem conhece os tremores, de quem é feito de fogo, de quem viveu sob as cinzas.
Quando eu morrer, quero apenas voltar às cinzas. Se possível, me devolvam, me lancem dentro da cratera do Irazú.

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domingo, 28 de março de 2010

cena da peça "Viemos todos do inferno" (título provisório)

Sala da casa. Maria Teresa, de biquini, assiste TV deitada no sofá.
CARLOS (entra vindo da rua) Ufa, que calor!
TERESA Ahn-hã.
Maria Teresa se cobre instintivamente com uma almofada. Depois desiste e a tira de cima.
CARLOS (vai até a cozinha, pega um copo dágua) Nooossa, nós andamos quilômetros.
TERESA Que saco, hein?
CARLOS A mamãe é louca.
TERESA Que novidade.

CARLOS E não adiantou nada.
TERESA Sei.
CARLOS Sabe o quê? Por acaso já foi alguma vez num cartório? Já foi despejada de algum lugar?
TERESA Despejada ou não, eu nunca tive mesmo um lugar...
CARLOS Ai, coitadinha.
Carlos dá a volta no sofá e só então a vê realmente.
CARLOS Tá pelada?
TERESA Não, imbecil. Tô de biquini.
CARLOS Dando show aí pra vizinhança, é?
TERESA Ah, é. A gente podia pelo menos cobrar...(levanta-se rebolando, aproxima-se das janelas)
CARLOS (rindo) É, ia fazer o maior sucesso.
TERESA Você acha?
CARLOS (vai atrás dela) Eu ia virar o teu cafetão. Vem cá.
TERESA (desvia) E quem disse que eu ia precisar?
CARLOS (prensando-a contra a parede) Acho que você ia querer.
TERESA (safando-se) Acho que você tá muito convencido...
CARLOS (a puxa pelos cabelos) Deixa de ser exibida...
Os dois caem no sofá, embolados. Quase se beijam, mas são interrompidos pela entrada de Madalena num rompante.
MADALENA Que loucura! Uma fornalha! A gente tá vivendo no inferno, só pode ser...

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quarta-feira, 17 de março de 2010

o apê do Cacau

então ele pegou a planta, abriu-a lentamente sobre a mesa e falou:
- Nós vamos ter de fazer algumas modificações, claro...
A coisa de 2 metros de distância, sentada sobre os caixotes da mudança com seus 95 quilos dentro de um tailheur lilás, Madalena apenas olhou de viés, acariciou o colar de pérolas e resolveu:
- Eu não vou morar numa kitinete, mas nem morta!
O Carlinhos sabia que não ia ser fácil:
- Tô tentando ajudar, não sabe como foi duro convencer o Cacau.
Faz sinal pedindo ajuda à irmã. Teresa respira fundo, aproxima-se da mesa como quem sobe o cadafalso e, seguindo o dedo do Carlinhos entre quadrados e retângulos, diz com falso entusiasmo:
- Mas é um quarto e sala, mãe, vê só!
- Nnnnão... Isso aí já é outra coisa, diz Carlinhos sem graça, abaixando o tom.
- Como? Tá aqui, ó. Não é uma sala, aqui?
- É. Do vizinho.
- Ah. Ué, a parede...
- Um pessoal muuuito legal, esticou o Carlinhos, espiando a mãe com o rabo de olho.
- Mas mora junto?
- Uma turma animada que só vendo. A mãe vai gostar.
A mãe resmunga:
- Quero ver me tirar dqui.
Teresa observa o papel estendido.
- Tem um rio? Isso aqui é um riachinho?
- É a rua, mesmo.
- Curva, assim?
- É ladeira.
- Ih... é o comentário que vem dos caixotes.
Mas Teresa é curiosa:
- A que sobre pra igrejinha?
- Não, pro outro lado.
- Ué. Mas do outro lado é morro.
A paciência do Carlinhos chegou no limite:
- Escuta aqui, alguém tem ideia melhor? Qualquer hora chega aqui o oficial de justiça, eu consegui a duras penas que o Cacau falasse com a tia dele, a mulher liberou pra gente ficar lá por um tempo, que o espaço é usado pra...
- Pra quê?
- Ah, não interessa. Agora vocês vão ficar de frescura só porque tem que caminhar mais um pouquinho?
- Carlinhos, esse apartamento... Teresa finalmente entende os muitos sinais de Carlinhos e, estarrecida, deixa a frase pela metade. Faz-se então um longo silêncio ensurdecedor. Carlinhos estava a ponto de desistir, já ia guardando a planta quando ouve um som vindo dos caixotes.
Eis que, secando o suor com um lencinho de cambraia, Madalena finalmente diz:
- Eu vou levantar...
Solícito, Carlinhos corre para ajudá-la:
- Vai aonde, mãe?
- Vou levantar o preço do colete a prova de balas.
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domingo, 28 de fevereiro de 2010

duas águas

Separou, no lado A, as qualidades do genro que toda sogra gostaria de ter: simpático, embora sério, inteligente, culto e educado. Bom moço, profissional extremamente competente e responsável, dado seu caráter perfeccionista. Apesar de bastante tímido, corporalmente contido, é querido no trabalho, considerado por todos bom conselheiro, reconhecido como racional e prudente. O lado A, provavelmente um bom pai, cidadão diurno muito respeitoso e respeitado, é definitivamente apolíneo.
Já no outro lado... colocou tudo o que lhe dava realmente prazer: o lado B é alegre, divertido, beberrão. Completamente solto, ele dança e canta, aproveita a vida na onda das sensações. Com sua conversa inteligente e resvalosa, tiradas espertas e a libido à flor da pele, ele ganha intimidades sem pedir licença. Sedutor ousado e abusado, conquista toda noite uma mocinha diferente. O lado B, notívago e boêmio, certamente um péssimo companheiro, é totalmente dionisíaco.
O único problema é reunir as duas facetas. Sim, porque o lado A e lado B compartilham o mesmo corpo, coabitam o mesmo ser.
Como fazer?
A precisa de B, é sua válvula de escape, é preciso não explodir. B precisa de A, é seu centro, é preciso não se perder.
Então um faz verdadeiros malabarismos para sustentar o outro, e haja adrenalina para evitar os flagras: nunca fala o sobrenome e muito menos o endereço, não anda com celular nem dá seu número de telefone, anota o das mocinhas num papel ou, melhor ainda, anota o email. Combina o chopp com amigos e usa parte do horário para encontros, diz à namorada que não pode vê-la aquela noite porque terá que acordar cedo no dia seguinte, etc, etc. Armações, esquemas, mentiras necessárias para a dura vida de malabarista deste pobre rapaz.
Porque veja, ele se chama Moisés.
Moisés, o que separa as águas do Mar Vermelho, o que possibilita a libertação...
Pois pobre Moisés. Separou as águas da vida. Ficou para sempre aprisionado em sua divisão.
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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

quando fui vaca

Sempre que viajo, ou pro interior do estado ou pra Minas ou pra São Paulo, vejo as vacas pastando e sinto uma saudade! É, é que já fui uma delas. E é, que é de lá que me vem a raíz: é de fazenda, de mato, curral, cana de açúcar, cavalo, porco, galinha. E doce de goiaba e pamonha e curau, tudo feito em casa.
Naquele tempo gostava mais era de caminhar pela sombra. Se não tinha, o mais que fazia era mirar a primeira árvore maiorzinha, de copa generosa, e rumar direto pra ali. Que nunca fui de me esquentar. Que essa é que é a natureza do meu gado: pachorrenta. Briga, mesmo, só sendo por causa de cobra. E olhe lá, que não sendo cascavel ou do porte, e ainda se não tiver armada pro bote, a gente nem... Que passeie pelo mundo e passe, que só de pensar em discussão, o trabalho que dá, ihhh, já cansamos... e nem vale a pena. Não, por essas bandas ninguém se mexe pra isso.
Que a gente tá é na paz, de bem com a vida. E tá que come manga, e bebe água do ribeirão, e pasto à vontade. Quer mais o quê?
E aquela serenidade bovina que só a gente sabe ter, aquela calma de quem sabe que o tempo é infinito, indiferente a qualquer pressa.
Êta, vida boa demais. Sabedoria é isso, né não?
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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

pera, uva, maçã...

Era logo cedo que a solteirona intacta, invicta, entrava no hortifruti. Passeava por entre as gôndolas de frutas e legumes, demorava bem uns quarenta minutos, uma hora, e saía levando, no máximo, um ou dois produtos. Às vezes, mesmo depois de todo aquele tempo, saía de mãos abanando. Mas no dia seguinte, mal as portas da loja se abriam, lá estava ela. Intrigado, o segurança conversou com as moças do caixa. É, todas reparavam, mas qual era o problema? "Deve ser pesquisa de preço". "Tem velhinha que vai a 3 supermercados por dia para aproveitar as diferentes ofertas de cada um. Acontece de pesquisar em todos a carne, por exemplo, e depois voltar ao primeiro para fazer a compra. Ou achar caro e não comprar em nenhum".
O guarda não ficou lá muito convencido. Alguma coisa na cara dela o fazia suspeitar de estranhas intenções.
Depois de umas semanas de presença quase diária – com chuva, não – ele pediu o apoio de um colega na entrada e seguiu discretamente a mulher em seu passeio pela loja. Foi logo surpreendido pela reação dela ao ver que já havia morangos. Ela abriu um largo sorriso e quase gritou de felicidade: “Mas já?” Correu para eles, pegou um punhado e cheirou, cheirou, aproximou-os do rosto, quase se lambuzou com eles. Mas então os devolveu, suspirou e ficou de levinho, acariciando. Em seguida avançou para as ameixas. Pegou uma, fazendo-lhe o contorno, passando-a lentamente de uma mão para a outra, com uma sensualidade que perturbou o segurança. As tangerinas ela fazia passear em torno da boca. E cheirava, a respiração ampla, as narinas abertas como animal, como uma égua. Os limões discretamente rolava pelo pescoço, massageando-se, deleitando-se, sempre cheirando. Quando ela achava que ninguém estava olhando, eram os pêssegos que rolava em torno dos seios. Só ele, o vigia, é que via. E boquiaberto, suava. E ansioso acompanhou a excursão por entre mangas e maçãs, uvas e melancias. E extasiado, hipnotizado, assistiu-a atacando os legumes. Das batatas às berinjelas e beterrabas, dos tomates aos pimentões, tudo ela cheirava, apalpava, deslizando pelo corpo, ombros, braços, cotovelos, pela barriga. Mas quando foi em direção aos pepinos e cenouras, quando ele a viu fechar os olhos e jogar a cabeça para trás, percebeu que estava perdido. E no instante em que os lábios se abriram e seu sutil sorriso lateral se transformou em mudo gemido de prazer, ele gemeu por ela. Ou com ela.
Imediatamente desperta, a mulher correu, sumiu, desapareceu.
Ele enlouqueceu. Procurou em vão seus dados, foi pego remexendo nos arquivos da administração. Tentou explicar, pediu demissão, mas ficou um tempo rondando pela área.
Agora parece que foram vistos, juntos, de mãos dadas, fazendo a feira.
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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

teste

agora fui judia sobrevivente de Auschwitz, perdi 3 filhos e um marido e por 15 minutos mergulhei na dor e revolvi história e memória dessa mulher, sentada exausta nos anos 70 no banco de uma praça em Paris.
êta vida louca... isso de ser atriz é vertente-vertigem, olha aí, a pessoa que se dilacera e quase chora logo sai, toda contente porque sofreu direitinho, e num instante já embarca no calor 40 graus desse Rio caótico e some na multidão.
entrar na pele dos outros e brincar de sofrer é muito doido, mas dá alegria quando a gente sai sobrevivente do outro lado. isso é sempre bom, de verdade ou não.
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

singela

Às vezes olho pra cima e vejo admirada esses verdadeiros excessos da presença divina: palmeiras altíssimas - sabe deus o que elas conversam com as nuvens! -, mangueiras frondosas, de troncos tão grossos que dariam 5 ou 6 de mim, jaqueiras enormes, carregadas de frutos.
Sei que sou baixinha. Talvez por isso, ou por ser lisinha, gostosa de tocar e acariciar – eu não tenho espinhos e não arranho ninguém, como tantas outras por aí - a garotada brinque tanto comigo. Eles sobem nos meus galhos, e eu deixo; penduram cordas e pneus que eu ajudo a balançar; comem meus frutos ou levam pra fazer doce. Às vezes sinto até o cheiro da panela em que uma parte de mim é transformada para integrar o mundo dos homens. Se tivesse voz, nesse momento juro que eu cantava. Que delícia, meu próprio cheiro, que prazer, suscitar o desejo e ser devorada com deleite! E à noite eu sonho, feliz, imaginando a alegria de homens, mulheres, crianças me repartindo, compartilhando a mais popular, a soberana sobremesa.
Às vezes tiro a sorte grande e me escolhem pra fazer piquenique. Minha sombra não é lá grandes coisas, confesso, mas eu me esforço juntando um pouco as folhas. É uma festa! Noutras vezes, são namorados que vêm se recostar, aos beijos, abraços e tudo o mais. Acolho, claro, discreta e com o maior prazer. Só é duro quando abusam da hospedagem e desenham em mim a canivete. Na hora, dá vontade de gritar: e depois, quando o amor passar? Depois vão embora e me deixam assim, ferida! Dá vontade de xingar!
Aí fico triste e olho prá baixo: a terra, as folhas caídas, os frutos perdidos... vá lá, foi por amor, tudo por amor... E se não gosto da cicatriz, ela ao menos me diz que o amor entre os homens algum dia existiu.
Quando às vezes olho pra cima e vejo as altas árvores, tão distantes, sorrio e agradeço a deus por ter me feito goiabeira. Acho que é uma grande vantagem isso de ser assim, pequena: é que acompanho os seres humanos bem de perto. Eles são do meu tamanho.
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