terça-feira, 24 de março de 2009

papéis

Por acaso, naquela noite carregava mais dinheiro na bolsa. Meio preocupada, um pouco antes de chegar ao ponto final, ela deu uma olhada para os últimos bancos do ônibus. Ficou olhando os três passageiros até que o rapaz do meio a viu. Os dois se encararam alguns segundos, o suficiente para que a cena fosse armada: ela apertou a bolsa contra o corpo, fechou os olhos rezando e quando os abriu novamente, ele devolveu com um sorriso e o olhar de quem entendeu.
A moça tentou se acalmar, fingindo naturalidade. Deu boa noite ao fiscal, caminhou para a frente sem se virar e assim que se sentiu protegida pela curva da escadaria, acelerou o mais que pode. Eram umas dez e meia, a escada mal iluminada estava deserta e não deu outra: em seguida ele já estava alguns degraus atrás dela. São cento e doze, já sentia o coração na boca, mas o preparo físico e o conhecimento do terreno estavam a seu favor. Quando passou pela guarita sentiu algum alívio, falta pouco, mas logo à frente ouviu o tom de ameaça com que ele se dirigiu ao vigia. Foi tirando as chaves da bolsa, quase sentia a sombra dele nas suas costas, faltava pouco, muito pouco e foi como um furacão que abriu a porta de ferro, depois a de proteção do hall e finalmente a da casa.
Nem acendeu a luz. Foi curiosa ver o rapaz passando embaixo da sua janela. Sentada no sofá, levou um susto com o grito que ele deu com o choque da cerca elétrica sobre o muro do quintal. Ouviu algum comentário irônico do vigia.
Aliviada, tirou o dinheiro da bolsa, contou.
Mas não conseguiu dormir. Tinha sido responsável pela cena; ela é que o fizera assumir aquele papel.
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Nenhum comentário: